sábado, 31 de dezembro de 2011

Dos detalhes inguardáveis


Ainda parecia manhã e voava, rodeando a pitangueira, um pardalzinho simpático. Anunciava a beleza do seu canto como quem dizia “Vê só? Não preciso de mais”. Eu estava aborboletada num canto da tarde, respirando a brisa de mais uma data que se partia. Partia-se. Partia-me. E o pardal, sem censura, arrancou-me um fio de cabelo em uma bicada estridente. “Puta que pariu!” – e o bichinho arregalou os olhos como só havia visto em desenhos animados. Assustado mas não bobo, sabia bem que me havia roubado um pertence precioso. Precioso, sim, porque tenho essas manias de acumular riquezas... como os cabelos. De tudo o que gostava, queria ter em grande quantidade. Cabelos, dinheiro, sementes de morango. E aqueles olhos esbugalhados mudavam a expressão como um pedido irrecusável de mais um fio. “É pro meu ninho e... ah, você tem tantos!”. Passei a mão pelos cabelos como quando fazemos depois de lavá-los, e os três fios que caíram lhes ofereci. Semvergonhosamente, pousou na minha mão e disse com os olhos: “O que quer ser quando crescer?”. E, de repente, um passarinho rebuliçou-me a alma. Não era simplesmente “o que vai” mas sim, “o que quer”. Na inocência de não saber que tudo o que eu queria estava ali dentro de mim, enquadrado no vento, nas penas, nos fios e no ninho da pitangueira, comecei a buscar na memória meus desejos mais cruéis. Porque eu sou assim, além de acumular as riquezas, gosto de crueldades. De venenos. Dissabores. Fui parar com os pés embaixo de uma onda quebrada, em cima de uma areia molhada. A onda que não precisa ser doce pra ser desejada. A onda que a gente quer pular e, ao mesmo tempo, mergulhar. A onda que faz cócegas em nossos corpos, que é suave e devastadora, que é bonita e tem som de paz; que é grande e metralhadora. Sozinha, sem nossa permissão, ela não se repete. Ela vem. Ela vai. Ela não espera pra bater a foto tampouco nos ilude ficando um pouquinho mais. Salgada, é doce. Existe mas não persiste. Volta... e nunca é a mesma. E ninguém, absolutamente ninguém pode guardá-la em qualquer lugar que não seja a memória.
Me sobravam uns três fios na cabeça quando olhei pro passarinho e disse: quando eu crescer, quero ser uma onda.


quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Inesquecivelmente


Que dia é hoje?

E, meio atordoada da bebedeira da noite anterior, cruzo os olhos com o Gabriel. Ou Rafael. Ou Emanuel. Enfim, prefiro chamá-lo de “Éu”. Ele me olhava. E pouco me interessa descrever como o fazia, ele simplesmente me olhava: bêbada, borrada e pelada. Levantei a sobrancelha direita junto com o queixo como quem diz “Qual é?” e, enquanto me vestia, ele sussurrou um “você... ah, você é inesquecível”. Por dentro, eu ri. Ele, coitado... ele queria eternizar o momento. Fiquei séria. Sabe aqueles instantes em que a gente fica na dúvida, depois, se falou mesmo ou só pensou que tivesse falado? Eu duvidei. Inesquecível? Quem quer ser inesquecível? Qualquer um é inesquecível! Não me interessa ser inesquecível. Inesquecível! Inesquecível... Lembro-me da minha primeira transa como se fosse agora: uma bosta. Inesquecivelmente uma bosta. Bem como do primeiro cara por quem me apaixonei, e do primeiro beijo, e do primeiro fora. Inesquecíveis. O primeiro quilo a mais, a primeira serenata telefônica, o primeiro vidro de perfume estilhaçado no quarto da casa de aluguel. Eu me lembro do primeiro “proibida pra mim, no way” e do terceiro ou quarto “eu gosto de você, mas não me procura mais, ok?”. O último sonho erótico, o último acorde enroscado nos dedos, a última língua... e a penúltima também. Eu lembro todos os caminhos de todos os corpos e todas as sensações. Lembro de todas as pessoas. Inesquecivelmente, lembro. Ser inesquecível, querido “Éu”, não me convém. Ninguém, em sã consciência, se esforça pra ser isso. Ninguém o é por mérito. Ninguém o é por prazer. Simplesmente é. Sem querer, sem pedir, sem lutar. É eternizado e nem sabe por quem, nem porquê, nem por onde. Inesquecibilidade é interessante, mas, nem de longe o suficiente.

Quando o Éu resolveu levantar e me esbofetear, acreditei que ele tinha finalmente entendido. Deitei as pálpebras uma sobre as outras e quando as reabri, meio segundo depois, me vi sozinha na cama, com o travesseiro entre as pernas, vestindo um pijama de ursinhos amarelo. Estalei o pescoço, passeei os dedos pelo meu corpo e disse pro Éu: é, talvez eu seja realmente inesquecível...

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Desabafo com Jurema

Deveria ser só um desabafo, mas a poetância de Sofia foi tomando proporções tais, até que se explodisse em um silêncio ensurdecedor. As estações aborboletavam-se em seu estômago: de trem, de ano, de luz. E um carnaval de lágrimas fazia festa sobre suas bochechas gordas:


- Veja, Jurema...

(...)

(..)

(.)

sentimos saudade, aos 13 anos, quando toda a nossa dor era um joelho esfolado. E, aos 15, da recuperação da escola. E aos 20 de quando, aos seis, deveríamos ter sido crianças. E emqualquer data quando o que nos preocupava era apenas o dinheiro. E um dia desses quando se perde o que não se tem.

Jurema, meio sem graça, olhou piedosamente para cada pedaço de Sofia ali, entregue a seus cuidados, respirou fundo tanto quanto pôde e:

latiu – ela também não tinha pai.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Salada de fruta

Cadê meu pedaço da manga? Quero fiapo que faz cosquinha na língua. E a casca que, no fim, lambuza a ponta do seu nariz. Das jabuticaba do seu zói, que brilha, bria... e muda de cor quando explode na minha boca, você. Você é que é jabuticaba. Você que é uva, e, se azedar, a gente chupa com casca e tudo! E se for doce? Que seja doce, uai! Ingual mamão com açúcar, limão com pinga, morango com mel. Do mel que também brilha, oia só, que nem você quando vê eu. Eu que procurei, desde um toquinho, descobrir que diabo que é esse trem de “brilho nos zói”. Eu que encontrei quando vi eu... nocê. Eu que... BANANA! escorreguei na casca e cortada, expremida – a fruta – virei suco! Mas, eita! Engasgou, foi? Ah... carocinho de laranja, bom se fosse de manga. E ainda vai dizer que tu, mangando assim de eu, não sabe que o fiapo da sua manga não cabe nos meus dente? Nem de pano, nem de açúcar, nem de mim. Tira esse caroço daqui! Tira de mim. Tira?
A mentira, vou dizer, é que o fiapo dessa fruta faz cosquinha na minha língua, na ponta do coração.
Leva tudo embora! Eu quero é mamão!

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Nascente

Um homem nasce quando sai do ventre. Entra invisível e só parte quando está pronto. E perde o cordão. E chora. E é embrulhado e banhado e cuidado. E mama. E chora mais. O homem só nasce quando sai do corpo do qual não se aparta após o parto. O qual parte e perdoa. O qual para, às vezes, de respirar.
E o nosso amor é esse homem que não se sente pronto. Que está dentro de mim, que se alimenta de mim; foge de mim. Que me engole e não sai e não sai e não sai! Que não é rebento, que me arrebenta, que me parte em putas que eu não sou. Que parte. Que me chuta e se mexe e se vira de ponta cabeça. E parte. Esse amor que não vive porque não é nascido e não morre porque ainda não nasceu. Que vem ter comigo, que ventre o umbigo, que vem ti o contigo, que ventre comido!
Que entra invisível e só parte quando está ponto... final.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Metatrouxe


Eu te trago uma poesia, um cinzeiro, uma rosa e um postal. Logo eu, que vivo com as línguas na ponta da metáfora. Eu que esqueci as figuras. Eu que não trouxe palavras. Um suspiro, um susto, um sopro; eu trago. Um sussurro no céu da alma. Eu trago fortunas e fadas e fronhas. Meio litro de sonhos, trouxeste. That’s a little, little, little, sweetheart. Trouxeste ainda três dedos de tequila. Tantos temores trazidos, trazendo, transados. Eu te trago um cheiro no queixo, uma cabeça grande, uma bunda pequena, uma aorta pulsando assim: ta-trago, ta-trago, ta- trago.
Trouxeste tua traqueia, teus dentes, teu lábio, dentro de duas de mim batendo em mim no postal que rasgaste. Tremendo uma das línguas nas minhas veias: tremivo. Tequila, per cortesia. Tequila, te mira, te quiero... disseste da rosa que secou? Senza lettere, sin palabras... justo eu que esqueci as armas. Uma simples sensa...ção; fração de segundos, centésimos, centímetros. Sementes? O cinzeiro caiu, e se viste no fundo das cinzas meu gosto, viste a ti.
Eu que te trago meus ombros nus, uma mão na cintura por baixo da blusa, um brindar ojos nos ojos. Tragar olhando nos olhos é amar. Tu que trouxeste a mudez e essa miudeza de mim, toda semente dentro de mim, toda a mentira, toda – a menina; mania.
Eu te trago uma poesia, um cinzeiro, uma rosa e um postal. Mas a rosa secou, o postal foi rasgado, o cinzeiro caiu e a poesia acabou. Feito charuto cubano, dez anos depois: se foi. Mas se fosse poeta traria outra, tragaria mais. Se quisesse, tragava, traria, tremia, mirava, marava.
Eu te trago uma poesia e um pouco do pouco que sei que só sou sem armas, sem roupas, se a mais.
Eu trago.
E ainda parece que faltou um pouco da sua cevada no meu nariz.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Sou deste, nordeste. Sou peste, sou Zé.

- O caminhão de goiaba passou por aqui?
- E o de cebola.
E enquanto um Zé descascava o trem, o outro contava o que havia visto. Um sole ardeno, bege sem fim: bem-vindo à senzala do mundo. Das veiz, em algum lugar, seus cucuruto pensava isso mesmo... "senzala". Oi tum. Mas era mutcho profundio, como se pode dizê. Como si pode pensá? Cabras e cobras e cactos e calangos e caatingas e colagens e castigos. A pobreza é linda, Zé. Pecado di falá. E povos e paus de arara e coronéis. E contos e cordéis. E verdes e pastéis. Escadas branca pa mode nóis dispecá. Padim Ciço pa mode nóis rezá. Oi tum tum.
Mas que, no fundo, a gente, aqui embaixo do mapa, quer acreditar que é mais feliz. E que a seca está na língua de quem diz e não canta; diz e não dança; diz e não balança a alma dentro de um baião. Que com seus lombos queimados, seu filhos mortos, seus pés descalços e cocos quentes, não se faz carpediar. Mas isso, branquelo meu, é o que tu qué acreditá.
Pedaço de ouro não enche barriga, mas sanfona véia enche coração. Oi tum tum tum.
- Tá chorano, Zé?
- Foi não, é a cebola que faiz eu lacrimejá.
Oi tum.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Idiotagens da vida

Foi esperando um idiota que eu não te vi passar no ponto. Não senti o seu cheiro de leite, não travei, não bambiei. Foi esperando um idiota que não suei as mãos, não gaguejei e nem fiquei febril. Esperando um idiota foi que não me apresentei, não me sentei, não tomei café. Não sorri sem graça, não derrubei o vinho, não vomitei. Por causa de um idiota, não olhei sua bunda, não escutei seu sorriso, não te disse o silêncio que eu digo quando sinto isso. E quando você passou bobinhomenininhomirradinho e, brincando me deu uma flor feiasemcheirosemcor, eu entendi: a idiota, ora bá, era eu! Ô, menininho, espera eu?

domingo, 12 de junho de 2011

Mamão-moinho

Há quatro moinhos de vento plantados em um pedaço meu. O do umbigo sussurra entre as pás o que todos os outros espalham pelo ar: quem é você? E desde que me entendi por qualquer coisa parecida com pensamento, desde que enterro o indicador direito no umbigo,  que acaricio o lóbulo da orelha, e que nunca tenha chupado chupeta, pergunto-me o mesmo. Perguntava. Primeiro, à mamadeira; até ela ser substituída pelo copo plástico e, este, pelo de vidro, que acabou numa xícara de café amargo embaixo do sol de uma manhã de inverno paulista. E, enquanto o vento soprava nas quatro pás, perguntava aos próprios dedos: quem são vocês? E, eles, em resposta, namoravam-se entre si: polegar direito com esquerdo, mindinho com anelar, médio com indicador. Procurei, então, qualquer coisa mais pensante que um dedo ou uma mamadeira: apelei à mamãe. Suspirando um sorriso longo, esboçou uma vontade tremenda de satisfazer a minha dúvida, ou a do meu moinho, quem sabe. Levantou-se calmamente, foi até o mamoeiro, levou-o até a cozinha, abriu a fruta no meio e me entregou, dizendo: “tire semente por semente. A cada uma, pergunte ao mamão quem ele é e só pare quando ele te responder”. Indignada, peguei uma colher, raspei as sementes todas de uma só vez e lambuzei-me toda de mamão. Nunca tive paciência pra miudezas melecadas. Desde então, os moinhos se desfizeram de fora pra dentro, derretendo no meu corpo. O do umbigo escorreu como um rio e seus afluentes, achando morada intrauterina. E toda vez que sinto frio, arrepio, ódio, paixão ou como mamão, sei que há um vento gelado soprando em mim. E as hélices só vão parar quando todas as sementes de todos os papayas e graúdos e docinhos acabarem. Daí, quem sabe, eu as encontre em outro lugar, qualquer um que não seja o meu mamão.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

"pra que ele possa ser de alguém"

Fez amor comigo uma vez e meia. Uma, pra mim. Pra ele, duas. Então uma e meia... fica assim mesmo. Dormiu, quase morto, babou um bocado. Abriu a geladeira, fechou o zíper. Eu queria que ele ficasse. Ele estava entediado;
Transamos uma vez só. Bem feito. Acabado. Gozado. Acordei e ele ainda estava do meu lado. Me olhava. Babava. Fechou a geladeira, abriu o zíper. Eu queria que ele fosse embora. Ele estava apaixonado.

domingo, 29 de maio de 2011

Os trezentos versos de Eloara

Nasceu uma vez Eloara, que não sabia chorar. Sorrira aos pés de laranja, à sombra, ao sol, à mãe, ao leite e às tetas da empregada da casa. Sorria. Eloara chorar não sabia. Trouxera um defeito irreparável, que só os deuses do Olimpo poderiam julgá-lo defeito. Para nós era efeito. Era vida.
Dia desses, explodiu em sangue; tossia. Escreveu, até seu último dia, um verso do que sentia. Foi quase um ano de dias.
Um dia morreu Eloara, seca de águas salgadas, cheia de sangue nas veias. A empregada juntou-a entre as tetas, aos prantos. Sem saber o que fazer do pequeno corpo, jogou-o no mar.
Desta vez nasceu Eloara, que não sabia sorrir.

domingo, 8 de maio de 2011

Quando alguém que não sabe falar vai embora

Enquanto a mulher chorava, a menina assistia a tudo, sem pressa. A outra cadela farejava os quatro pés da mesa, fingindo desorientação, mas, no fundo, era a única que entendia tudo. Mulher e menina pareciam uma só. “Deve ter sido hemorragia interna” – palpitou a vizinha. A verdade é que a nossa buzunguinha estava ali, nada intacta, mordendo o lençol com os olhos abertos. Não respirava; não mais. Tudo não demorou mais que uma hora: o atropelamento, a dor, os gritos, a lenta morte rápida. Abanou o rabo pra mostrar que estava bem, enganou-nos: era um abano de despedida. “Fizemos de tudo” – gritava a consciência da mulher; “Será que cachorro vai pro céu?” – perguntava a cabecinha da menina. Ouvi dizer, certa vez, que existe um lugar separadinho lá pros nossos buzunguinhos e, quando chegamos no outro lado, somos recebidos por eles com muita festança! Queriam ir junto: despedir, abraçar, pisar no seu rabo pela última vez... mas não dava, tinham de trabalhar. Chamaram o vizinho que ensacou o corpinho peludo e sem vida. E a menina assistia a tudo. A mulher chorava. Pareciam uma só, mulher e menina. Observavam cada cantinho do quintal, procurando uma lembrança feliz. Refizeram o trajeto da paixão da cadelinha. Desaguaram uma tarde inteira de lágrimas por um animal que nem falar sabia. A outra cadela observava as duas e tentava, em vão, alegrá-las. Tudo o que queriam era dormir pra sonhar com a buzunguinha: sem dor, sem tristeza, sem lamento. Só um rabo peludo balançando. A menina ligou pro pai, que mora longe, e perguntou: “Pai, cachorro quando morre também vai pro céu?”. Ouvi dizer que eles caçam preás. Ouvi dizer, também, que eles chamam baleias.
Enquanto a menina chorava, a mulher assistia a tudo. Mulher e menina pareciam uma só: e eram.
Minha baleia foi embora, papai. E agora?
Quando alguém que não sabe falar vai embora, só nos resta abanar o rabo pra se despedir.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

O segredo do seu abraço

Se não te quero bem, não te dou. Se te amo, dou-te por infinitos segundos, talvez, até, tantos quantos duraria um orgasmo nosso. Se não houver orgasmo nosso, dou-te do mesmo jeito. Pra pedir desculpas, pra matar saudade ou, então, pra sentir saudade mais tarde. A verdade (ou o que queria que fosse) é que cada abraço tem um segredo diferente. E esse segredo cheira. Segredo de mãe cheira a alho, de pai a graxa, de irmão a leite. Segredo de amigo cheira a cerveja ou pinga ou coca-cola com limão. Gosto dessas viadagens de cheiro que o segredo tem. E não é verdade? O seu, por exemplo, ainda não descobri qual é. Seja por isso, às vezes, que procuro uma desculpa toda semana pra te abraçar. Esse cheiro sem camisa, cheiro de casa bagunçada, cheiro de ‘o que será que ela quer com isso?’. Que cheiro, enfim, é o do seu segredo? O do seu abraço? O das suas costas? O da sua cicatriz? Sei lá, sei lá, sei lá. Sei aqui, é que enquanto tento descobrir, procuro achar no meu corpo de onde vem o cheiro que eu sei que é o seu. Cafungo os ombros, os cabelos, os braços. Enfio a blusa nos buracos do nariz e nada. Não sei que segredo é o segredo do seu abraço, mas sei que ele cheira gostoso e enquanto eu me cheiro procurando seu cheiro, me acho achando você.

sábado, 23 de abril de 2011

A árvore que dava dinheiro

Sofia achava assim: quando Deus ou o Diabo nos dá algum dom, a gente usa: pra colorir o mundo ou ganhar dinheiro. Ela foi feliz por dezoito anos, rabiscando arco-íris nas cinco paredes do quarto. Até que um homem de terno e gravata pretos, sapatos e maleta pretos, camisa e meias brancas, barba branca e preta e olhos cinzas cochichou: 'você acha que dinheiro nasce em árvore?' HA-HA-HA: ecoava a sua risada grosseiruda, cheirando a cigarro de filtro amarelo.
 E Sofia nunca mais mudou de cor.

sábado, 9 de abril de 2011

Curiosidades de cadeira e chapéu

Zé era uma espécie de Benjamin Button. Quando pequeno, há muito, muito tempo perdido no tempo, recusava-se a usar calças curtas. Parece até que já nasceu com oitenta anos. Suspensórios, camisas, botões e chapéus. Cheirava a palha do cigarro e, num esforço colossal, desobrigava a cadeira de balanço da inércia. Se ela pudesse falar, acho que riria; agradeceria. Ou, quem sabe já tendo seus setenta e poucos anos, resmungaria a interrupção de seu descanso. Zé pouco se lixava: balanço é balanço e descanso é descanso.
Quando pego com o nariz enfiado no fumo, disfarçava. Zé não sabia fumar. Passeava na cidade sem dar as mãos a ninguém. Já não paquerava; era velho demais. Oito primaveras não é mole não, cara.
Há Marias que vão dizer que, lá pelos seus vinte e alguma coisa, Zé juveneceu. Mergulhou na fonte e acordou de seus suspensórios. Brilhantina, vespa, besta: Zé comia todas. Não dava muita bola para as mariices das Bobas. Fazia de conta de tudo.
Zé era bonito, mas o tempo passa. Embuchou uma Maria, fugiu para casar de graça (que naquele tempo, vou te contar, pra casar dava um trabaaai), voltou de mãos dadas. Os cabelos perderam cor; os dentes, força; a pele, rigidez. A barriga ganhou banha; a careca, brilho; os olhos, coração. Aprendeu a brincar com os netos: de cavalinho, de piquesconde, de peteca, de amar. Não curtia mais cadeira de balanço, não gostava de cigarro, não usava mais chapéu. E, na rede, chupando picolé, via passar na rua os velhos que fora: chapéus e fumaça; achava graça.
Pena dessa Maria que achava tão charmosos esses senhores de chapéu no coco, boina e bengala. Essa beleza que só a idade sabe criar. Maria amava um menino que, ao invés de escovar a dentadura, chupava pirulito escondido antes do almoço. E, com os olhos correndo curiosos de um lado pro outro, de cima pra baixo, daqui pra lá, Zé via a velha balançando a cadeira, peidando frouxo no assento, equilibrando os óculos na ponta do nariz e, enquanto ela levava o dedo médio até a língua e trocava a página do jornal numa sequência de câmera lenta repetitivamente irritante, ele pensava: “que nojo dessa mulher!”

domingo, 20 de março de 2011

Como reconhecer um artista

Não penteia os cabelos e, quando o faz, é para mantê-los desconexos. Desconexidade. Descomplexidade. Desorganização. Sem pudores: seu corpo é sua expressão. Trança os braços por ele, embaixo do chuveiro, enquanto a água desenha gotículas de orvalho sob seus seios, ombros e umbigos. Beija-se... e lá se vão as bolinhas transformadas em lágrimas, correndo da pinta do ombro esquerdo pra desembocar no umbigo, escapar pela virilha, contorcer-se pelo meio das coxas e terminar no calcanhar. Ama-se. Ri-se. Gargalha-se. Chora-se. Borra-se a maquiagem e, eis aí, novamente, mais uma arte de sua expressão. Perfuma-se, abraça-te, beija-lhe os lábios com tanta graça que lembra a ingenuidade de uma criança. Sente o seu cheiro atrás da orelha. Fecha os olhos. Morde os lábios. Dança a língua no céu da boca, segurando entre os dentes qualquer fiasco de tentação. Fiasco. Se precisar, fica na ponta dos pés. Rodopia. Vai e volta. Flutua. Torce o tornozelo. Sapateia no seu desejo. Brinca até se achar suficientemente dona da situação. Pinta o rosto. Veste-se mal, pessimamente mal para a sociedade executiva. Não tem definição do que é ser passional e racional; ela é os dois. Deixa um espaço da sua imaginação pra você e, quando vai embora, dança pra você voltar. Joga um beijo no ar.
Mas o artista revela-se, enfim, quando continua a amar-se em cada pedaço e a cada banho, fadigando sua imaginação astronômica, tirando seu espaço, casando com seus travesseiros e sorrindo, no escuro, de olhos abertos, enquanto o pé direito faz um movimento de pêndulo esfregando-se no pé da cama. Você não voltou, e um artista ainda sabe sorrir.

domingo, 13 de março de 2011

Do latim, uolare


Eu era um passarinho e me chamava Alegria. Em latim, era tudo o que eu queria dizer. Piquescondeava  entre as flores. Ziguezagueava no ar. Tinha cheiro de cupuaçu e podia comer com açaí. Não era colorido, eu; mas manchava a ponta das peninhas no pólen. Tinha um palácio de galhinhos secos. Tinha ovinhos brancos. Tinha de voar.
Voei, eu... mas não pro sol. Meu nome era Alegria, Ícaro é que não havia de ser. Três ovinhos brancos, chocochacoando no ninho.  Uma marolinha de esperança cor-de-laranja-de-feira.
 Com minhas asas, voava pra onde queria. Conheci mar. Conheci montanha. Conheci uma passarinha laranja que me ensinou que a fruta do morango é a semente. Que castanha de cajú faz bem pras penas.  Eu disse: "caju não tem acento". Ela me bicou, presenteou-me com uma de suas penas e voou. Ela não tinha ninho com ovinhos brancos que chocochacoavam.
Eu sou uma passarinho que se chama Alegria. Eu choco meus ovinhos brancos. Eu guardo lembrança da passarinha laranja. Eu sou colorido e tenho uma marolinha de esperança. Conheci amar. E mar. E mais: conheci uma passarinha que tinha de voar.

sábado, 22 de janeiro de 2011

Chocolate

Muita gente diz que gosta de chocolate. Só que nem todo mundo o sabe comer. Chocolate é muito mais que metê-lo goela abaixo. Mais que morder um pedaço duro de cacau industrializado. É preciso esperar o chocolate: seu ponto, seu cheiro, seu clima. Comer chocolate é ter a paciência de esperá-lo adequar-se à temperatura da sua língua. É estar em sintonia com seu próprio corpo e comer com prazer. Deliciar. Sem culpa, sem medo, sem crise. Morder o chocolate por pura gula, por pressa, por status, é como beijar sem vontade. Tem de se beijar o chocolate. Com os lábios, com os dentes, com a língua, com a saliva. Chocolate é passear a ponta da língua em volta da colher, e trazê-lo devagar ao céu da boca sem pressa de engordar. É chupar o tablete, dançando-o entre os dentes, até se liquefazer. É morder o bombom o-mais-de-va-gar-pos-sí-vel. É encostar os lábios na caneca e sugar pouco-a-pouco, até se espalhar por todos os milímetros quadrados da sua ‘saúde bucal’. Chocolate é sexo bem feito, é beijo bem dado, é tesão. Pecado que não precisa de outro corpo pra realizar; que não pede ninguém pra compartilhar. É um egoísmo espetacular, um orgasmo sem igual. E é por isso que as mulheres gostam tanto de chocolate. Chocolate é uma mulher. Mulher é muito mais que metê-la vagina a dentro. É preciso esperar a mulher: seu ponto, seu cheiro, seu clima. Comer mulher é ter a paciência de esperá-la adequar-se à temperatura da sua língua. É estar em sintonia com seu próprio corpo e comer com prazer. Deliciar. Mulher que não sabe comer chocolate, só sabe fingir. Homem que não sabe comer mulher, não sabe o que é gozar. E quem não gosta de gozar?

domingo, 16 de janeiro de 2011

quarto de agosto

Quando eu tinha sete anos,
foi-se um você da minha vida pequena
e eu disse "Pai, ô pai"
vai com Deus que eu vou te amar pra sempre.

Quando eu tinha dezessete anos,
foi-se outro você da minha vida média
e eu disse "Mãe, ô mãe"
vai com Deus que eu vou te amar pra sempre.

Quando eu tinha trinta anos,
foi-se esse você da minha vida-vida
e eu disse "Irmão, ô irmão"
vai com Deus que eu vou te amar pra sempre.

Quando eu tinha cinquenta anos,
foi-se você da minha vida grande
e eu disse "Amor, ô amor"
fica mais um pouco que eu vou te amar pra sempre.

Até que eu fiz setenta e sete anos
e eu repeti, devagarinho, sem respirar
"Amor, ô amor"
vou-me agora, você vai me amar pra sempre?
Fica mais um pouco... que daqui eu vou te olhar.