sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

10 desculpas para a gente não chorar

É difícil não se importar. Simplesmente não se importar; simplesmente difícil. E quando não dá, a gente pensa.

É complicado não reviver memórias se a música toca. Acorde após acorde. Unicamente, toca. E quando relembra, a gente suspira.

É estranho conhecer outros nomes iguais ao seu e nenhum deles ser o seu. É chato não ser você. E quando não é, a gente lembra.

É ridículo ter medo de te encontrar na rua. Decepcionante não encontrar. E quando encontra, a gente disfarça.

É engraçado fingir a falta de entusiasmo quando você liga. Você liga. Mas quando não, a gente espera.

É absurdo deixá-lo tocar o meu violão. O meu violão para ela. Toca: a gente ouve.

É impensável estar pronta em dez minutos. E, pra você, a gente está.

É impossível ficar longe. E, quando aqui, é sempre lá. A gente compreende.

É monótono esperar aparecer. Não aparece. A gente dorme.

É eufórico seu olhar. Não olha. Não liga. Não ama. E, a gente, desmontando cada pedacinho de esperança; de cuidado; de projeto de amor; de monossílabos; de “talvez ele deva estar ocupado”... a gente? A gente chora.

domingo, 28 de novembro de 2010

Redenção

Olhos petrificados: o redentor está em guerra. À sombra de seus braços alvos, há sombra na face de todos os alvos. A fumaça branca sobe para tocar suas mãos e, espere! ... toda redenção, enfim, é branca. Por baixo do seu manto, entre os dedos de seus pés. Há uma obra de arte nascendo pela ponta de seu calcanhar. Às suas costas, tingem-se os morros. O vermelho é sangue. O sangue é negativo. “O-“. Estamos precisando de sangue O, o doador universal. Querem salvar o mundo com o gatilho de uma pistola. Quero te marcar com as balas do meu fuzil. Eu trabalho para o governo. Eu sirvo à sociedade. Eu acredito em Deus. Eu rezo todos os dias; eu peço redenção. Embaixo do seu nariz, pinta-se a Guernica brasileira. É quase janeiro, no Rio de Janeiro. Logo, em cimento, nossa estátua da Liberdade pode sorrir: de braços abertos, é carnaval no redentor.

domingo, 22 de agosto de 2010

Pé-de-moleque

Emílio, ele se chama. E ele existe. Diz ter duas mães. Oito anos, ou sete, ou nove. Mora com o avô. Não toma banho. Tem olhos cor de mel, cabelo castanho claro, piolho e um buraco pra dois dentes que abrigava três: “A dentista que tirou, prô”. Diferentemente das outras crianças, ele não pede beijo, nem abraço, nem carinho; mas sorri pra qualquer um, a qualquer hora e, principalmente, durante a bronca. Quase não o vejo chorar. Precisa sempre de alguém pra mandá-lo lavar a boca depois do almoço. É raro dormir durante a tarde, mas quando o faz, custa a acordar. Baba. Cambaleia. Sonha com os aviõezinhos da boca. Ou não. “Tava sonhando, Emílio?” “É, prô... sonhei que eu tavo furano a oreia”. E a gente cai na risada.

Dia desses, reparei no pé do Emílio. Não é pé de criança, pensei. Tem um formato e uma cor e uma dor que só pé de gente grande tem. As unhas guardam a falta de qualquer coisa que se entenda por família. Uma ausência de cuidado entre um dedo e outro. A conformação estampada, enfim, no dedão. Disse, uma vez, que se ele não fosse embora, ia eu. Ele não foi eu. Eu também não. Esse pé de moleque, que chama o avô de pai, se recusa a permanecer no chão. Emílio – esse Emílio – pula, tropeça, machuca, pragueja, irrita, maltrata, xinga, abusa do corpo, da alma e da paciência. Acontece que esse pezinho sujo nunca me pisou. Esse nariz catarrento nunca me respirou. Essas mãos ordinárias nunca me estapearam. Essa cabeça piolhenta nunca me piolhou. Acontece, também, que eu não faço ideia de que seu pé mulambento não sabe pisar num lar. Que o seu nariz escorre-todo-dia espirra pó-que-não-é-poeira. Que sua vergonha já não é vergonha pra mais ninguém. Que não existe ‘mães’ nenhuma. E que não importa quantos sermões ouça, ele não vai mudar. Esses pés cascudos nasceram pra trilhar caminho que gente como eu não tem cu pra compreender. E, talvez, seja tal parte do corpo a única que ainda resguarde algum vestígio de ingenuidade e, por isso, ande pra qualquer destino, por qualquer caminho, preocupando-se, somente, em manter-se longe do chão sujo de realidade branca de poeira-que-não-é-pó.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Sou feita de madeira, matéria morta

A porta estava trancada e ela só queria usar o telefone. Então, ela quebrou a porta. Arrombou. Despedaçou o batente. E foi só. Se ela queria a atenção do mundo, problema seu. Se precisava abrir a porta da vontade de arrebentá-la; de arrebentar-se; de arrebentar-te... e daí? O que importa é que o batente caiu. A porta abriu. Os moradores chegaram. Brigaram. Choraram. Eu vou pagar! Elas choravam. Eram lágrimas e farpas e palavras e vazios pisoteados no chão. Pode me xingar, assim fica melhor. A vítima sou eu. Eu sou o centro agora... e agora. E agora, o que vai fazer, ahn? Eu já te fiz chorar. Eu já abri o mundo; eu já extravasei. E eu nem precisei usar o telefone.


E ela só queria um pouquinho de mundo. Disk Mundo, boa noite. Não desligue, sua ligação é muito importante para mim.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Um desses congressos

Mudança de paradigma cultural. Segundo Fulano de Tal. Pós-modernidade. Está na minha pesquisa. Tempo. Capitalismo como única maneira possível de se organizar o mundo. Silêncio. Aporismo. Fulano de Tal. Está na minha pesquisa.

Pensamento maniqueísta. Comunismo. Segundo Sicrano de Lá. Psicanálise. Sociedade. Política. Está no meu livro. Contemporaneidade. Comparação. Patente. Vaso sanitário. Está no meu livro. Está na minha pesquisa. Segundo Sicrano de Lá. Está aqui.

Epifania. Búfalo. Esquecimento. Mascar chiclete sem amor. Está no meu livro. Está na minha pesquisa. Está aqui. Segundo Beltrano Daqui. Mulheres escritoras não se casam. Mulheres escritoras não se casam? Segundo Beltrano de Lá. Encontro com o real. Pensadores, eu citei. Aspecto do objeto, eu falei. Está na minha pesquisa. Silêncio. Tempo. Cinco minutos. Tempo? Dez anos. Tempo. Está aqui.

Problematização. Feminismo. Movimento. Mulher. Sexo. Amor. Outro viés. Intrínseco. Inerente. Eu faço esse raciocínio. Está na minha pesquisa. Segundo eu mesma. Segundo Fulano de Tal. Ler. Casar. Transar. Mulher. Está no meu livro. Mulheres escritoras não se casam? Está no meu ventre. Está aqui.

Discutir. Reduplicar. Diferenças hierárquicas entre os sexos. Concorrência. Orgasmo. Filhos. Crítica. Mulheres escritoras não se casam. Objetivo. Vida. Amor. Está no meu livro. Está aqui.

Teoria. Contexto. Interesse. A partir da década de 70. Acadêmico. Homossexuais. Sexo. Amor. Pós-modernidade de novo. Menstruação. Pretensões científicas. Física. Moral. Desmoralização. A mulher de novo? O filho. Está no meu ventre. O ódio. Está aqui. O orgasmo. Está no meu livro. O sangue. Está nos meus olhos. Mulheres escritoras não se casam.

Está na minha pesquisa.
Está no meu ventre.
Mulheres escritoras querem se casar.
Está aqui.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Declaração de amor eterno


Sabe, Zé... nóis é casado faiz tanto tempo e nunca larguemo. Nunca briguemo... assim, briguemo feio de verdade memo, né? Igual a Dolores e o seu Luis. Tinha dia dela saí pa barrê o quintar tuda roxa. Mas nóis não. Das veiz fico aqui pensando cá comigo, por causo de que ocê se apaixonô tanto por conta de mim. Eu sempre fui rechonchuda. Ta bão que tinha donde pegá, mas eu tenho pra mim que num foi por causa disso, né Zé? Cinco fio. 49 ano de casório. Sete neto. Faiz o quê... uns 60 ano que nóis se conhece? E ocê foi largá da Maria Emília por causo deu. Mas ela era feia que dói... mais feia que eu. Ah, Zé... e num é? Inveja nada, seu véio maledito! É a verdade. Inveja, inveja... eu lá ia ter inveja daquela saracura? Sempre foi seca... de tão ruim que era, aposto. Morreu sozinha, viu? Se tivesse casado mais ela tava aí com as frauda tuda suja! Seu véio malagradicido! Inveja, eu? Mas, Zé... fala pra mim, que que ocê viu ni eu que tincantô? Foi meuzói de jabuticaba? Foi minha boca carnuda? Minhas anca é que num hão di sê. Purque sabe, Zé... premera vez queu vi ocê, mim apaixonei mêsm foi pelus zói. Nossinhora! Depois cê deu uma risadinha e eu fiquei mei sem graça... mas só prestava atenção nu zói. Mas fala, Zé. Disimbucha logo, homi. Foi meus cabelo de índia? Foi o que, inferno?
A bunda.
QUÊ?
É, uai. Foi por causo da bunda. Eu nunca menti procê. Seu peitinho é micho, suas perna é gorda, sua barriga é mole e hoje seus cabelo é branco. Mas eu amo ocê, véia... principarmente dis costa. E conta aqui pro seu Zé... gamô nus meu zói por conta di sê azui, foi?
Óia, Zé. Hoji ocê quase nem tem mais pêlo no corpo, os que tem tumbém são branco. Tenho o maior trabai de lustrá essa sua careca perfumosa e acho até charmosin seu saco encostando nus juei. Fora o pinto que num sobe faiz deiz ano. Mas há 60 ano atráis, eu mi apaixonei pur essizói bunito num é por causa di quê eles é azu não. Eu oiava pru teu zói pra esquecê que ocê não tinha dente. Mas eu amo ocê, véio... principarmente durmino do lado da dentadura boiano nu copo. Eu amo ocê!

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Querido professor,

É copa do mundo e o Brasil ganhou. Foi pras quartas de final, sabe? Não que eu entenda de futebol, mas de quatro em quatro anos nós, mulheres, amamos loucamente esse esporte cheio de paixão, alegria, inteligência, coxas e bíceps e abdomens, e ritmo de festa. Ah, por que inteligência, professor? Sei lá... não é? Enfim. O importante é que o senhor saiba que o Brasil ganhou. E cada gol que fazíamos me deixava muito feliz. E quando fico feliz, eu bebo. Mas cada passe errado, cada perda de gol, cada PUTACAGADA que aqueles cachorros gostosos faziam eu ficava nervosa. E quando fico nervosa, eu bebo.
A verdade, professor, é que eu abandonei a alegria e o nervosismo para vir pra casa fazer o trabalho que o senhor pediu. Eu tinha muita vontade, mas acontece que eu estava muito feliz e o senhor sabe, né? É, professor, eu bebi. Não, professor, eu já estava em casa. Tem cerveja aqui em casa também, sabe professor? O senhor gosta de cerveja? Pois é, professor. Mas a verdade é que, apesar de muita vontade de fazer o seu trabalho, meu estômago estava meio, como eu posso dizer? Bom, eu gorfei, professor. Não em cima do seu trabalho, claro, até porque eu ainda não comecei. Mas não me entenda mal, professor. É que depois do gorfo me deu uma puta dor de cabeça. Aí eu olhava pros seus textos e as letrinhas embaralhavam. O senhor sabe como é, né?
Pra piorar, professor, eu entrei numa crise lastimável de existência e identidade. Perguntei ao universo POR QUE COMIGO? e ele não me respondeu. Tentei ainda que ele, o universo, fizesse o trabalho pra mim, mas nada. Não posso dizer que minha cadela comeu o trabalho, porque o senhor pediu para enviar por e-mail. Também não posso enviar o e-mail em branco e jurar por tudo o que é mais sagrado que eu nem vi que não anexei o arquivo. Eu tento não ser hipócrita, sabe professor?
Por conta dessa súbita depressão que me tomou (hehe, sem trocadilhos, né professor?) voltei pro bar e bebi mais um pouco. Umas duas, três, cinco garrafinhas. Pedi um lanche gordo pra não ficar com dor de cabeça e poder fazer seu trabalho antes que o prazo da meia-noite acabasse. Mas acho que o lanche me fez mal e as letrinhas continuam dançando. Elas rebolam, debocham de mim, professor! Só porque não consigo fazer a porra do seu trabalho! O frango devia estar estragado.
Na verdade, professor, faltam 15 minutos para a meia-noite. Eu estou bêbada, não tenho decote e não quero abrir as pernas. Na verdade, professor, eu queria saber se eu não poderia entregar seu trabalho amanhã. É que amanhã o Brasil não joga e meu dinheiro pra cerveja acabou.
E aí, professor, já é ou já era?

terça-feira, 22 de junho de 2010

Re-partindo a alma

Fiquei fora por três dias e, quando voltei, meu quarto estava todo branco. Bonito, mas sem graça; igual aos modelos do SPFW. Igual a mim. Sem graça igual a mim. Fechei os olhos e tentei, pela primeira vez, não me questionar. Queria não entender todo esse branco com gosto de nada. Não adianta pintar as unhas de vermelho e depilar a alma. Não adianta limpeza de pele, nem massagem com pedras aromáticas. Não adianta tentar gostar de mulher. Não adianta parar de menstruar; nem cortar, nem pintar, nem hidratar, nem foder todo o cabelo. Não adianta transar o mundo. Não adianta o mundo transar você. Não adianta. Não vai adiantar.
E se não vai adiantar tirar a roupa agora pra tocar meu violão sem meus seios implorarem para não serem mais espremidos por essas três bolhas malditas, o que é que vai adiantar então? Se eu perdi a conta das minhas pintas porque não enxergo as costas, o que é que se faz? E se eu não tenho espelho em casa, e se minhas piadas são engraçadas e se a rosa não abrir? Vai me olhar com essa cara derrotada e pedir pra eu ficar? Nesse quarto colorido e fedido? Nesse corpo bonito e sem graça? Nessas mãos pequenas? Nesse peito mudo?
Me desculpa, mas não dá. Eu fiquei fora por três dias e jogaram tinta guache no teto da minha alma. Escorreu pro peito. Caiu no útero. Parou no pé. Aí eu chutei você e sua semgracisse. Eu chupei o mundo pra dentro do meu umbigo. Eu cuspi um filho de dentro do meu cordão. Eu abri as pernas pro oceano às duas horas da tarde na praia de Santos. E antes de escrever um texto pro cara que eu conheci com a língua da língua de lá, voltei pro meu quarto branco, pro meu teto manchado, pra minha alma depenada, pras minhas unhas vermelhas. Voltei pras minhas entranhas, minhas estranhas, meus úteros e meus cordões. Arrastei uma lata de tinta branca e mergulhei pelada dentro. Porque o branco é sem graça como eu. E mesmo sabendo que não vai adiantar, eu abro meus braços brancos pro seu sorriso e te deixo me manchar. Na verdade, vá em frente; tem um milhão de latas brancas pra me repintar. A verdade é que eu não quero mais me repintar. A verdade é que querer não vai adiantar.

domingo, 13 de junho de 2010

Aqueles quilos

Meu corpo viaja quilômetros. Quilometricamente viajo. Enfio o nariz na janela; não sento no corredor. Colo os olhos nos quilômetros.
 Durmo.
Babo.
Chego.
Volto.
Qui-lo-me-trar. Ele não sabe medir distâncias, o meu corpo. Nunca andou de avião. Turbulência é para os fracos, pensei. Prefiro os quilômetros e as horas quilométricas. São dias. São meses. São anos.
E se no meio do quilo-metro eu te conhecer, ah... eu vou ter que te dizer. E talvez, foi um prazer? Pó...p-ode me ligar. Eu sei que você gostou. Você parece um esquilo. Vem me visitar?
Meu corpo viaja quilômetros enquanto minha alma, coitada, não quer milímetro nenhum.

domingo, 23 de maio de 2010

Delinea dor


            Eram três livros na cabeceira. Duas mulheres e um homem. Estava bom. Ela poderia ser feliz assim. Mas alguém queria lhe despir o gosto adocicado da solidão. E por quê não? Sempre o fez. Acontece que agora ela queria mais do que apenas se despir. Ler, assim, vestida apenas por uma xícara de café; a verdade no pé, a libido nas mãos.
E cada página virada é um comprimido do esquecimento. Mas queriam mesmo é deixá-la nua. Fazê-la livrar-se de tanto orgulho, amor próprio. É tudo demais nessa mulher!
            Foi então que pintou a cara. Decidida a vestir a máscara, esperou. Uma. Duas. Três horas. O homem lhe chamava à cabeceira. As mulheres sussurravam de-va-gar. Foi desvestindo cada peça acompanhada de um nó na goela com gosto de merda. Nem sapo, nem perereca; era merda.
            Olhou-se no espelho. Como era linda desvestida. Só uma xícara de café. Delineador preto à la Lispector. E só uma xícara de café. O cabelo já não cobria mais os seios. Só uma xícara de café?
            A calma quis aproximar-se. Viu abrigo nesses três. Allan. Patrícia. Clarice. Eram três livros na cabeceira. Um homem, duas mulheres. Estava bom? Estava bom... até alguém lhe querer frustrar sua frustração.
            Mascarada ela podia mais, nua ela podia tudo. Desmascarada, no entanto, não pararia para refletir a metafísica de estar só. Ódio não era pior que não-amor. Prometer era pior que não amar.
            “Ah... como eu te odeio!”
            Quer uma xícara de café?

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Aquele bicho

Olha para as pessoas com uma fome... até abre a boca. Só falta babar. Dizem que mulher gosta mesmo é disso aí. Cabra macho sim sinhô e coisa e tal. Observo, talvez, um brilho no olho característico do animal prestes a enfiar os dentes no pescoço do bichinho quase inocente. A namorada do lado. Feia. Burra. Apaixonada. Primeiro a gente sente dó. Depois ri. Gargalha. Debocha. É gostoso debochar dos outros. Mas, ver o bicho babar – que deveria ser muito prazeroso também – dá um nojinho no fundo do intestino grosso.
E abraça abraçando o mundo inteiro. Cheio de dedos e bocas e barbas e rebarbas. E baba. E abre a boca. E escorre dos olhos um balde de luxúria. Mas daquelas luxúrias nojentas e gulosas e nada preguiçosas. É daqueles bichos grandes que, mesmo pequenos de tamanho, crescem na nossa lembrança; lembrança de manter-se o mais longe possível.
E ela, idiota, sorri. Passeia de mãos dadas, exibe a barganha. Chega atrasada na aula com a felicidade de ter estado acompanhada por aquele bicho que disseca lebres por cima da sua cabeça, sem que ela, ao menos, perceba. Ou percebe. Não deve ser tão burra assim.
Mas eu gosto é de debochar e de ter nojo. É simples assim. Mulher que gosta mesmo é disso aí a gente sente dó. Depois ri. É gostoso debochar dos outros. E é mais gostoso quando ‘os outros’ sofre.
Gozou? Não, por nada. É que eu preciso ir dormir.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Notas de porteiro

            Seu Zé passava as horas de trabalho a passear os olhos pela juventude do condomínio Dom Quixote. Quando velho rabugento reclamava o som alto, achava era graça. “Viver faiz baruio, seu Ernesto”, pensava o danado. Cansou de ver briga de casal, bico de moça bonita e malandragem de adolescente safado.
            Dandara já havia dispensado uns cinco rapazes naquela portaria. E o Zé ria. “Êta menina tinhosa”, pensava o danado. E de certo que tinha razão. Dandara, bonita e bicuda, fazia os moços de gato e sapato. Pintava o sete e pedia bis. Vez em quando sofria a primavera e chorava as pitangas com seu Zé. “Mas justo desse que eu gostava fui levar um pé?”. “Se acarma, Dandinha, num tinha di sê”. E lá ia a menina fazer sofrer três estações de garotos por conta de uma primavera infeliz. Seu Zé tentava sossegar a menina: “Num vê a Sufia? Vivia remungano feito ocê... agora taí di barriga e marido”. “Deus me livre, seu Zé. Sai pra lá”. “Intaum num recrama, Dandinha. Num tinha di sê!”
            Até que um dia, da esquina se via, Dandinha e um tal de amigo de estudo. De óculos engraçado, cabelo engomado, cinto na calça e cadarço num laço impecável. Subiu meio brilho – cadernos em punho – sorriso de lado. De canto. De boca. Seu Zé, danado, ria sem um dente. “Lá vai essa diaba sofrer mais um trouxa”.
            No primeiro dia foi ‘tchauzinho’ de longe; na segunda vez foi aperto de mão. Beijinho no rosto; abraço apertado; sorriso escancarado; beijo na mão. Seu Zé, desconfiado (e mais: desconjurado!), resolveu perguntar o que estava pra ser. Dandara, diaba, fez ar de mistério, mas seu Zé, danado, logo entendeu. Viu no brilho dos olhos da menina Dandinha amor puro e sincero, mais bonito que o seu. Mas foi dito e feito pra seu Zé, ordinário, pintar a carranca no bico de Danda. Soltou um gargalho e, quase Dom Quixote, pensou alto assim: “Depois de tanto sofrer primavera por moço charmoso e galante, foi logo você, minha Dandinha tinhosa, se apaixonar no verão pelo gago Tadeu?”

terça-feira, 13 de abril de 2010

Um senhor entre aspas


            Eu te amo. É bom que confesse antes que desista. Afinal de contas, a intenção é desistir. Pecamos pelo exagero; o exagero do não-exagero. Tudo é pouco para nós: os problemas, as palavras, o amor – ou a demonstração dele, justifique-se como quiser. Ah, é! Já ia me esquecendo... o “senhor” não gosta de se justificar. Está sempre certo, então... pra quê? Por que tudo isso? Tudo é muito grande, um grande exagero para o “senhor”, um enorme não-exagero para nós. E são tantos os motivos para não sentir sua falta quando não houver mais abraço, mas insisto em temer esse dia. Se é que ele vai chegar, pois talvez eu vá antes e, por Deus, o “senhor” não vai querer notar a minha ausência.
            Eis que escolhe um seleto grupo de palavras a fim de censurar meu preguiçoso amor. E sua imagem sisuda vai se petrificando dentro de mim. Para de falar; nunca vai chorar; não sabe sorrir. A verdade é que te amar me dói por tudo o que o não é e me engrandece e alimenta e acalma pelo pouco que se deixa ser. Não amo porque aceito nem aceito porque amo. E há de ser assim até o começo e o fim. Tem de ser assim.
            E de repente é simples entender porque eu não posso deixar de pedir essa benção carrancuda. Essa que me aprova com um indiferente fechar de olhos. Nem piscar... nem a piscar o “senhor” se dispõe.
É simples querer te defender do mundo em que me colocou? E que se eu não quero desistir, não é por amor ao “senhor”, mas porque, desde o princípio, fui eu que te escolhi. Foi por amor àquelas tais causas perdidas, às famílias partidas, aos lares vazios. Se eu não desisto de tirar as suas aspas é por amor a mim... e somente a nós, meu senhor.

domingo, 4 de abril de 2010

Verão-me

Fez de conta que era inverno. Forrou o fundo do copo americano com vinho barato. Soltou um tango francês de voz brasileira. Falou com o espelho em italiano. Escolheu peças de roupa desconexas e jogou na cama. Dançou com a manga comprida do moleton azul. As meias coloridas pintavam-se de marrom enquanto ela se jogava dos braços de Pitt para os de Jolie. Pensava em como suas pernas eram lindas enquanto traçava a pálpebra direita de preto. Sempre a direita primeiro. Abraçou a programação do cinema: era hoje. E as caixas ecoavam, quase como um ritual ‘Ne me quitte pas’.
Esperou o vinho evaporar da garrafa. Mordeu um morango azedo. Enfiou cinquenta reais no bolso e deixou o sol sair dali. Jogou a bolsa no banco de trás e quase não sentiu vergonha por estar sozinha. Bobagem a sua. Esqueceu que ‘era’ inverno, cruzou as pernas e deu de cara com o tornozelo esquerdo. Despido, ali, fita gasta; quase decidida a ir embora pra casa. Entrou na fila, comprou o bilhete e sorriu: ‘Ne me quitte pas é o caralho’. O funcionário do cinema segurou o riso.
E a fita continuava ali, no tornozelo esquerdo; fazendo lembrá-la de que não era inverno, que o vinho era barato, que o tango era falso e que as meias ainda eram coloridas.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

L'attimo fuggente

Toda a muleta que deveria ser usada para encantar meia dúzia de palavras, enquanto eu queimo parafusos pensando uma estratégia pra te ver sem querer mais tarde, não pode estar aqui. Nunca vai poder. E se você não pode ser mágico pra mim, nunca pode ser: nunca pode ser pra mim.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Ginecologicamente testada

Sofia não era uma virgem qualquer. Falava de sexo com a prepotência de alguém muito experiente; enganava muitas pessoas assim. Não que isso fosse bom. Boas moças, dessas pra se casar, não devem ser como Sofia. Mas agora ela tinha um namorado. Pobre garoto. Em poucos meses, percebeu que ela não era tão doce e que o poder de o ser nas horas mais inesperadas era apaixonante. Viciante. Sensual.
Paciente, ele soube lidar tão bem com o mau-humor e o azedume da namorada virgem, que a comeu. Vitorioso, mal sabia ter ele sido um peãozinho no tabuleiro de Sofia. Não que ela fosse uma cleptomaníaca de pintos virgens, mas ela gostava do que era bom. E o seu pinto virgem não era bom pra ela.
Duas semanas depois do pé na bunda, esbarraram-se na sorveteria que costumavam frequentar. Ela, dissimulada, sentou-se na mesa do casal. Riam-se todos. Clima leve. Alma limpa. Tudo ia bem, até ele soltar uma piada-velhas-virgens inconveniente – e esse era o seu forte – ‘mas eu só queria te comer’. Elas se entreolharam. Ele engoliu seco, percebendo a cagada. Curiosamente, ela riu. ‘Mas agora posso dizer que fui ginecologicamente testada por você’. Levantou-se. Pagou o sorvete. E da entrada da sorveteria pronunciou sorrindo: ‘porque o que você chama de sexo, pra mim pareceu um teste... e péssimo, diga-se de passagem’.
Clima pesado na sorveteria – e esse era o seu forte – sim, o de Sofia.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Zé, dona Maria Emília e o pobre do governador


Deu no jornal. Na tevê não dá, purque não tem tempo, né? Tá passano jogo e BBB. Aliáis... quem ganhô? Quem saiu? Pobre guvernadô. “Fora hostilizado” pelos professor da rede estadual – esses sim, bandi baderneru! Onde já se viu, dona Maria Emília? Jogá ovo nu carro de um homi tão bom? Feiz até us amigo da escola esse fim di semana, viu não? Bsurdo! Se enfia em greve só pra armá confusão. Num leu na notícia? Até briga eles arrumaro. Não querem trabaiá, essa é a verdade. Num viu no comercial? Vida boa é a deles. Quem dera eu tê estudado pra sê professor. Num viu que eles ganha cinco mil real, dona Emília? E ainda qué fazer greve? É só estudá pra sê bão; eu vi na tevê... eles num mingana não! Bandi vagabundo!
Dona Maria Emília, professora aposentada do estado. Sem bônus, sem créditos, sem voz. Salário estagnado há mais de dez anos. Cinco mil é engraçado, mas a piada vem impressa no hollerit. Respirou fundo, ergueu a sobrancelha direita com a elegância de que há tempos não gozava e disse rouca e calmamente: Vai tomar no cu, Zé!

terça-feira, 16 de março de 2010

Eita, trem

Foi tiro e queda. Na cozinha. Dona Euci, com a touca na cabeça, catava feijão. Ângela contava as proezas do filho mais novo. E o trem fez piuí. Tiro e queda para uma mente insana e sem filhos enquadrar a cena no filme da sessão da tarde. E era ‘à tarde’. Tinha sombra de jacarandá lá fora e flor das nove horas esperando pra perfumar a gente. Barriga cheia do almoço e cheirinho de janta no ar. Pote de plástico cheio de mamão picado. Mamão docinho. Caminhão do mamão. Olha o mamão!
Esse barulho do trem dá medo na gente, tia. Atrapalha a bronca também. Mas quando começa o barulho da criançada, a gente lembra do mamão, do trilho do trem, do feijão. Sorriso da gente corre lá pro passado, pra infância, pro feijão que a mãe contava. Nem conta mais. Nem história, nem arroz e nem feijão. Daí o barulho acaba; vira música, eu sei lá. Daí um ninhozinho de piolho abraça a gente, sorri faltando um dente e diz, quase querendo ser sincero: ‘quando crescer, quero ser bunita igual você, tia’.
Sei lá... coisas de sessão da tarde.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Ser prima

Seu vestido colorido era lindo e eu poderia revivê-lo a eternidade inteira. A gente fazia o caminho da minha casa até a sua como se cada galho ou pedra fosse um grande obstáculo. E era tudo realmente grande para nós duas. Fazíamos planos eternos, cúmplices de um olhar. Você nunca me disse, mas eu sei que era assim. E eu dormi menina, numa tarde de agosto em que os caminhos eram longos, os vícios eram bobos e os vestidos coloridos. Eu não chupava o dedão e você não cutucava o umbigo. Dormimos meninas, sem nos preocupar se um dia tudo aquilo iria embora de nós.
Foi quando passei em frente daquela que um dia foi a minha casa e percebi que já não era mais. Trocaram os portões, mudaram o jardim. Eu te procurei; eu me procurei. Voltei pelo caminho da sua casa, que virou um quarteirão. E os galhos eram galhos. E as pedras eram pedras. Eu dormi menina naquela tarde em que brincávamos de amarelinha no quintal e não tínhamos vergonha de provar ao mundo que a gente se amava tanto, que podíamos ficar juntas na escola, na rua, no banho e na cama e que isso não era problema nenhum; pra quê separar?
Mas você foi acordada antes de mim e te levaram embora. Sem mãe, sem chão. E eu fiquei, na esperança de você voltar um dia, quando finalmente te deixassem partir. E você, enfim, voltou, mas sem vestido colorido; querendo sexo e debochando da minha nostalgia. E eu tentei acordar a menina da tarde e te pedir pra não ter ido embora. Eu quis ficar vivendo seu vestido colorido. Mas, de repente, eu acordei mulher. E vi que não existia mais caminho que ligasse as nossas casas e que as meninas que dormimos naquela tarde não morreram, mas nunca mais vão acordar.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

A vendedora de flores

Ai! E a lombada entrou no carro de uma vez só. Ai? Isso lá é aviso que se dê? Caímos na risada. Fazia uma meia hora que procurávamos o tal lugar. “Acho que não é por aqui não”. Pois é, avisei que era a rua de cima; debochei. “É aqui, só que é aqui embaixo”. Nos olhamos. Aqui embaixo? Olhei pro asfalto e caí na risada de novo. Como assim aqui embaixo? Comecei a desconfiar. Essas coisas embaixo demais costumam não dar muito certo; o capeta que o diga! Rodamos mais uns minutinhos até encontrarmos a possilga. E não é que era embaixo mesmo? É, embaixo de um viaduto. Passamos por cima daqui, olha que divertido! E agora estamos aqui em frente. Da fresta da porta eu vejo uma jovem senhora rebolando até o chão – blusinha dobrada pra cima, mostrando as suas curvas delicadamente delineadas pelo colesterol. O som não estava tão ruim quando estacionamos, era aquela banda que-pensa-que-eu-sou-que-não-sou-o-que-pensou. Uma letra emocionante. Mas, assim que pusemos os pés lá dentro, a coisa melhorou. Um funk batidão mucho loco
Eu, em plena forma... a cara feliz depois de 12 horas e alguns extras de trabalho, escoliose impecável, cabelo brilhante, uniforme e rasteirinha. Com toda essa pinta de mulherão e... “RG, mocinha”. Hein? Há quantos anos não me pedem RG? Tá doido? Vou fazer 20 anos! Mas estou tão louca de vontade de entrar debaixo de um viaduto, que se você pedir meus documentos de novo nem sei o que vou fazer. Acho que virar as costas e ir embora chorando. Fato, fato. Entrei. Meu senso de humor foi se refinando enquanto eu desfilava pelo ambiente, esperando que o pavimento e os carros caíssem sobre a minha cabeça a qualquer momento.
Vai beber o que? Uma coca-co... uma cerveja, vai! Hein? É, uma cerveja. (tempo – com direito a cara de pamonha do pai) Vo-cê-vai-be-ber-O-QUÊ? Há, pensam que me intimidei? É isso mesmo, uma cerveja. Pisei na merda, abrir os dedos ei. Certo, uma cerveja. A mesa grudava, as pessoas grudavam, os dentes tortos não se desgrudavam. Uma donzela beijava seu príncipe de olhos abertos para observar os movimentos delicados pelo espelho. Sim, paredes espelhadas. Sensação dobrada de tudo aquilo à minha volta. E o funk torando. De repente as lágrimas saltam dos meus olhos. Chorando? Sim, muito... Mas, (in)felizmente, não posso compartilhar as visões.
Fiquei intrigada com uma mulherzinha vestindo uma legging infeliz com um short jeans por cima. Ela carregava seis botões de rosas e ia oferecendo aos casais apaixonados. Apaixonadíssimos eu diria. Tão apaixonados que lhes faltava mandar a pobre vendedora pobre de flores tomar no cu. Olhava pra doninha com ar de quem diz ‘tô num baile funk de pau duro, mina... tá loca que vou comprar alguma coisa pra essa tilanga?’. Não sei de onde ela tirou essa ideia idiota de vender flores. Quem compra flores hoje em dia? Tudo bem, se ela tivesse escolhido um baile da terceira idade eu até entenderia. Se ela não estivesse usando aquela roupa horrorosa eu até perdoaria.
Sumiu. Acho que desistiu. Que nada! Foi beber uma cerveja e voltou a oferecer as rosas pras mesmas pessoas, mas não pros mesmos casais. Sim, há rodízios de casais por aqui. Me irritou quando insistiu três vezes pro senhor meu pai comprar uma rosa pra coisinha que nos levou àquele paraíso de lugar. Você acha que meu pai tá pegando isso? Hello, querida, nós temos nível. A vendedora de flores saiu das entranhas do viaduto levando um bouquet com seis rosas abertas. No outro dia, meu pai pegou a coisinha num forró meia-boca, mas um pouco mais pra cima do viaduto (tá bom, não era tão meia-boca a picanha de lá). Mas, flores... não sei porque até agora a doninha do baile não conseguiu vender.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Timidez. A sua, claro.

Ué. Tá fazendo o que aqui a essa hora? Me ver? Hmm, claro. Eu sei, você não resiste a esse shortinho branco, o camisetão amarelo sexy e o cabelo preso ‘doméstica style’. No fundo, eu sei que esse cheiro maravilhoso saindo da sua boca é só pra eu confundir o copo d’água com a sua língua. Mas... por que você não toca em mim? Tá com medo? Vai dizer que se encheu de perfume pra me dar um abracinho xôxo? Eu sei quais são suas intenções. Entrar no seu carro? Bom, não sei... tô tão difícil hoje. Dar uma voltinha? Não dá, olha as minhas sobrancelhas; seria um atentado ao pudor sair de casa assim. Para de rir. Para de me fazer rir. Para de ser um amigo tão legal. Vê se entende que entre os meus palavrões eu suplico pra você fazer um carinho nos meus cabelos e me olhar como se eu fosse a última mulher da terra pra você, mesmo isso sendo a mentira mais absurda e mais deliciosa do mundo. Tenta ver que, por trás dessa casca grossa que te xinga e diz te querer longe, eu só quero que você me trate como todos os caras pelos quais me apaixonei me trataram. Eu ia te querer. Eu ia te desejar. Eu subiria no seu carro e iria pra qualquer lugar, com qualquer sobrancelha. Ficaria nua pra você me observar e a gente faria amor a noite inteira, o dia todo, todo o dia. Mas você quebra todas as minhas expectativas. Finge timidez. Finge descontração. Você faz diferente dos outros caras e, pior, não faz a mínima questão de me conquistar. Eu fico intrigada, querendo te levar pra cama só pra saber o que você vai fazer comigo então. Não tô acostumada com tanta autonomia. Eu só sei receber elogios e carinhos e mimos. Não sei dar nada disso. Só sei reagir. E até agora foi assim. E, apesar de não ser nenhuma sexy symbol, já estava acostumada a decifrar os olhos que me chupavam, me comiam, me mastigavam e me cuspiam. E eu gostava disso. Mas com você não dá. O máximo que posso fantasiar é que você se esconde olhando pros postes, lendo minha camiseta só pra eu não ter certeza de que você quer me chupar, me comer, me mastigar e, se eu tiver muita sorte, não me cuspir.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

A notícia que ainda não saiu





Manoel Cardoso dos Santos Júnior. Esse era o nome do corpo estirado no chão. Coberto por uma folha de papelão, deixou um pé do tênis pra trás. Estava de bruços, dormindo gostosamente sem travesseiro. Milhões de cones e luzes vermelhas, nenhuma novidade. Três dias antes havia saído a notícia de uma criança atropelada. Tava correndo atrás de pipa. A culpa é das férias, oras. Onde já se viu soltar pipa na rodovia? Mas o Manoel eu não sei não. Talvez o jornal diga que ele tava puto da vida e resolveu se matar. Talvez o motorista estivesse bêbado, mas é bem improvável; era uma rodovia. Rodovia é pra carro, não é? Então Manoel não tinha carro. É... porque se Manoel tivesse carro, ele teria sido o acusado por homicídio culposo. Manoel era negro, devia ser trabalhador. Ou era um vagabundo, drogado, bêbado. Se jogou no mar do asfalto e só. Quem liga? Rodovia é pra carro, não pra gente. Azar o dele. O jornalista vai pensar ‘mas que ideia, atravessar a rodovia à noite? Bicho burro!’. E Manoel não tinha carro. Às vezes, ele se revoltou porque não tinha carro e resolveu causar problemas sérios a um infeliz motorista de classe média dessa cidade feita de rodovias; feita pra carros. Feita pra quem tem carros. Minuciosamente planejada. Mas, quem liga? Quando viu o papelão, nem você ligou. Achou que era qualquer coisa sem importância. E não é? Quando virou a cabeça pra tentar matar toda sua curiosidade e viu o policial levantando a folha de papelão, você pensou ‘mas que ideia, atravessar a rodovia à noite? (apesar de saber que o soltador de pipas morreu à luz do dia) Bicho burro!’.
Se o nome do corpo era Manoel Cardoso dos Santos Júnior, eu não sei. Se era trabalhador ou vagabundo, você também não sabe. Se ele queria, enfim, deixar o tênis pra trás ou foi a maior cagada da sua vida (ou morte, sei lá, tô confusa), a gente só vai descobrir amanhã.



(Mas que a biografia do Manoel não vai passar no Jornal da Globo, todos sabemos)

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

O cofre e a churrasqueira

Dia seguinte madruguei. Primeiro dia de trabalho. No caminho fiz amizade com a dona moça Sofia, que foi me falando os nome dos bicho grande que a gente passava por debaixo. No maior deles, ela falô bem meiguinha, apontando o dedo gordo pro monstro: “Esse aqui é o viaduto Ayrton Senna”. “Eita porra”, pensei. Acho que eles faiz daquele tamanho pra nóis oiá pra cima e não botá reparo em quem mora debaixo. “Seu Ayrto num deve de tá feliz com isso não”.
Dispois ela me mostrô umas igreja bunita que só. Aqui é catedral que fala, né Zé? E, de repente, uma porrada desses tal de ministério foi aparecendo tudo infilerado. Deixou o memoriar JK pra trais. Fiquei abestado de ver tanta construção à toa, mas o que me intrigô mesm foi os ministério da educação, do trabalho e da justiça. “Mas e os rapaiz do seu Ayrto?”. Achei mió ficá queto.
Chegando perto das torre com as bacia virada, esqueci que me fartava um dente e arreganhei a boca. Só tinha visto em foto. Dona moça desceu. Achei engraçado que não tinha fila pa entrá na câmara não. Aliás, Zé, num tinha ninguém lá, só os guardinha pa guardá sei lá o que. Tudo o dinheiro tava bem longe dali já, né?
Foi quando entrei na ponte JK que me dei conta que meu ponto tinha passado uns 15 minuto. Disisperei, Zé. Mas aquele trem era tão bonito que perdi o ponto traveiz. Fui parar notra asa. Perdi o emprego. Na vorta tinha um tar de “Museu Vivo da Memória Candanga”, acho que é isso. Achei que era calango, mas era isso mesm. “Eita porra... museu vivo?”. Otro dia eu entro aí, se num tivé que pagá tamém. Quer dizer... deixa pra lá, vai.
No acostamento da rodovia – que agora nóis já sabe que é corpo de avião – tinha um caminhão vendendo cofre. Desci no ponto mais perto. O vendedor me garantiu que era cofre do bão, que tinha muita saída. Disconfiei, o trem tava cheio de cofre, uai! Do lado do caminhão tinha umas churrasqueira tamém. “Por que cofre e churrasqueira, seu moço?” Pra que tinha muito dinheiro pa guardá no cofre já levava a churrasqueira pa comemorá, né? Mas ele discunversô. Perguntei se num pudia trabaiá eu mais ele ali, qualqué mixaria tava bão. “Se tu comprar uma mercadoria minha, tá feito”. Não entendi o negócio, mas aceitei. Vida de vendedô deve de ser mió que de pedrero, né?
Só que daí complicou, Zé. Na pensão num pudia armá churrasco não. Daí eu comprei o cofre. O patrão mandô entregar. Parcelei em 24x discontano do meu salário mínimo. Agora tô oiano presse trem aqui no meu quartim apertado. Mas me ajuda, Zé... será que se eu jogá uma lenha e ponhá fogo dendesse bicho dá pra assá uma pizza?

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A filha-da-puta da dona Dinorath

Desde que cheguei nesse hotelzinho de meia pataca que eu digo bom dia pra dona Dinorath e ela nem tchum pra mim. Balança a cabeça – sem esboçar nenhuma expressão – só pra confirmar que me ouviu mas que não faz a mínima questão de que meu dia seja bom, afinal, o dela é sempre uma merda mesmo, né?
Outro dia resolvi pegar essa infeliz. Desci as escadas mancando e passei pela recepção sem dizer uma palavra. Quando voltei do café ela perguntou se estava tudo bem. Fiz uma cara meio chupada de limão e respondi: “Indo”.
Na manhã seguinte ela quis saber do meu pé. Lembrei da encenação e dei uma pisadinha em falso. Ela deixou escapar um sorrisinho de canto de boca. Eu disse que ainda estava doendo, mas logo melhorava. Dali em diante, ela passou a me cumprimentar, sem muito entusiasmo, mas já era um começo.
Quanto mais eu reclamava, mais satisfeita com a sua vidinha de bosta ela parecia. Foi então que meu pé resolveu doer mesmo. Ficou parecendo um sapo-boi. Entrei no hotel mancando – de verdade –, com a sacolinha da farmácia na mão. “Piorou, né?”. Sorri bem largo. Ela levantou uma sobrancelha meio que não entendendo porquê alguém com o pé todo fodido poderia sorrir assim.
Em uma semana meu pé já estava bom. Cansei de encenar praquela filha-da-puta. Saí do carro cantando e balançando o corpo. Apoiei os cotovelos no balcão. “E aí, dona Dinorath, que dia lindo foi hoje, hein?” e saí. Subi as escadas cantarolando. Ela me acompanhou com os olhos e nunca mais me cumprimentou

sábado, 16 de janeiro de 2010

Bilheteria

De dentro da cabine ela não via nada, nada além de uma restrita paisagem. X-burguer + suco = R$6,90; até parecia novidade. Já se acostumou com o sorvete verde da direita. As luzes coloridas já não têm mais graça, mas ela gosta de ficar olhando. Em pisos diferentes, na mesma direção, há duas lojas de operadoras diferentes de celular; ela acha graça. Cem reais na mão; ela acha pouco. Cinquenta reais o sapato; ela acha muito.
Todos os dias são: o mesmo pilar, a mesma lixeira e a mesma promoção. Algumas orelhas grandes, alguns olhos azuis e alguns narizes tortos. Bocas vestem inúmeras cores de batom e peles escondem diferentes frustrações: os olhos deixam escapar tudo pra ela.
De tanto ver as mesmas coisas, aprendeu a rir das gravatas apertadas, das bermudas floridas, dos vestidos de gala. Hoje o sorvete parece um chapéu verde, ontem era um balão. A escada rola pra cima, as pessoas rolam pra baixo; pinga sorvete no tapete. O nenê suga o peito desesperadamente com os olhos mamando as luzes que giram para todos os lados.
A boca dói de tanto sorrir pros olhinhos das crianças, e se desfaz num bico quando o pai se recusa a comprar o bilhete e, ao invés de chorar, o bichinho dá a mão ao protetor e lança um olhar de piedade mortífero. Escondida, ela passa o menino da rua no brinquedo sem pagar e a boca volta a doer.
No final do dia, despede-se dos pilares, da lixeira e das promoções. Pensa que todas as mães são iguais e que todo sorvete é verde. Fecha a cabine o mais rápido que pode, como se tudo aquilo fosse embora quando a chave virasse.
Dia seguinte, para a sua surpresa, liga tudo bem rapidinho. Ansiosa para arrancar um quase sorriso da gengivite mais sisuda, dá oi para a almofada verde da direita e abre o sorriso mais sincero que as articulações do rosto possam suportar; só porque, de dentro da cabine, ela via tudo.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Pulando a cerca

Começamos o dia mal, Goretti. Plenas nove horas da madrugada, segundo sono e o celular me toca. Número desconhecido; modo silencioso ativado. Isso é um disparate, sabia Goretti? Um absurdo mesmo!No horário normal do meu relógio biológico, levanto. Mal comecei a existir para aquela terça-feira e o calor já incendiou meu humor – que já não estava grande coisa, diga-se de passagem. No dia anterior tentamos entrar na piscina da faculdade. Dia de limpeza. “Não abre de segunda, querida”. “Mas, moooooço, eu sonhei com essa piscina. Isso é um pecado!”. Infelizmente ele não podia fazer nada. Claro que se pudesse não faria. Imagina! Eu tendo que trabalhar, suando em bicas, e esses universitários vagabundos usufruindo da piscina em plena segunda-feira? Não, são regras antigas, menina.
Mas não existem regras para terça-feira, certo? Errado. Existe uma regrinha infeliz (que quase ninguém conhece) para pegar a chave e abrir o portão da piscina: precisa da carteirinha. Precisa, ainda, de exame médico em dia. E precisa, principalmente, de muito bom humor da recepcionista mal-comida para dar a chave a uma dupla de estudantes inocentes e sem carteirinha. Bia e Alê, eu sei, vocês tentaram.
Quase sempre a gente chega por lá e já tá tudo aberto. E foda-se quem pegou a chave. Só que estamos em férias, Goretti. Do carro eu já vi que não tinha nenhum filho da puta na piscina e, evocando meus contatos, mandei rapidinho uma mensagem para a Bia (que foi para o pai dela com os dizeres “Não tem nenhum filho da puta nessa piscina. Morri”). Dois minutos depois a encontrei acompanhada da Alê. Desesperadamente suadas, fomos atrás do Arthur. Ele é tão cheio de contatos, tem que conhecer alguma alma bondosa que tenha a porra da carteirinha. Não, ninguém. Mas, não desanimemos... we can (na verdade, we não can, we need muito!).
Era questão de vida ou morte. Aquele coito já tinha sido interrompido uma vez. A piscina estava limpinha, lembra que segunda é dia de limpeza, Goretti? Pois é. Nos reunimos tensamente sob o calor de Rio Preto. Enquanto os três rodeavam a piscina, eu botava o biquíni – cena sexy no banheiro masculino (o feminino era muito longe). Quando saí, eles já tinha encontrado uma mesinha perto da cerca. Um olhar foi o suficiente: vamos pular! Primeiro ele, depois as duas mais ágeis e eu, claro, por último (seguindo a sequência dos escolhidos no time de voley do colégio). Todo mundo dentro, agora é só fingir que entrou pelo outro lado e usufruir do nosso direito (?) de estudantes afoitos por um mergulhinho inocente na piscina.
Sem fazer muito barulho (tentando, eu quis dizer – o barulho me persegue) e com muita maestria, pulei. Foi pra-ti-ca-men-te um gozo, Goretti. Que sensação maravilhosa! Agora sim o meu dia está bom. O problema são as pessoas que vão nos ver aqui dentro e pensar que o portão tá aberto. Foda-se, que pulem também, oras! E não é que pularam mesmo? Mais quatro pessoas se achegaram. Só faltava alguém morrer e nós botarmos Rio Preto na chamada do JN, como disse a Alê. Eu até fiquei esperando que algo mais excitante acontecesse pra poder escrever. Queria ter sido pêga pela recepcionista e entrar para os anais da faculdade como universitária baderneira. Já pensou o glamour, Goretti? Ia ser demais. Mas nada disso aconteceu. Ninguém morreu, ninguém foi expulso da faculdade, ninguém entrou pra anal nenhum (eu espero). Mas, e agora? Como vamos sair daqui? A mesinha fica do outro lado. Fodeu? Que nada! Escalamos a grade da quadra e saímos bem bonitinhos. Outros nem tanto (como eu). Ainda esperei até o último instante pra sermos pegos – literalmente – no pulo. Mas, nada.
O que me restou foi pegar a toalha sequinha que eu tinha esquecido no carro antes de cometer o pequeno delito em grupo e botar na cabeça. Fazer sucesso no trânsito também faz parte do meu show, porque não? Principalmente se for uma toalha de oncinha. Cheguei em casa refrescada, com marquinha de biquíni, e chamando muito a atenção dos funileiros vizinhos daqui de casa. Foi então que eu lembrei da ligação de manhã que eu não atendi e resolvi retornar. “Droga Farma, boa tarde”. Hein? “Droga Farma”. Quem me ligou? “DROGA FARMA, BOA TARDE”. Desisto. Me ligam desse telefone e eu sou obrigada a ser maltratada ainda? “Vou verificar” ... “Você também mora no Eldorado?” Eu sei que eu moro mal, queridinho, mas não, não moro no Eldorado (e, curiosamente, não estava precisando de nenhum remédio). “Ah, então a gente não vai estar sabendo quem pode ter estado te ligando”. Tá bom, obrigada e desculpa (chegou a hora de ser educada).
Meu dia podia muito bem ter terminado com um admirador secreto na outra linha, com um B.O. da polícia pelo delito cometido ou com uma manchete no Diário da Região. Mas, sabe Goretti, mesmo sem admirador e sem holofotes, meu dia foi muito feliz. Amanhã? Ah, Goretti... para de ser chata! Deixa o amanhã pra mais tarde, sua rabugenta!