Havia algumas horas que a viagem tinha acabado, mas ela não
saía de mim. As pessoas ainda conversavam eufóricas e a música ecoava dentro da
minha cabeça, bombardeando ondas sonoras por toda a extensão do meu corpo, que
tremia. Tremia e voltava. Respirava. Os minutos passavam na velocidade das
horas e, de repente, a vontade imensa de tornar aquele momento infinito
transformou-se no tesão imediato por dar fim. Dar fim a você. Dar fim a mim.
Dar fim ao mundo que construímos sem tijolo nenhum, apenas desenhando com neon
na luz negra os degraus das nossas vidas. O brilho das meninas dos olhos das
meninas era encantador. O dos meninos era ofuscante. E eles se cruzavam com a
luz do sol, que cutucava os poros da pele tão sensível ao toque. Todos podiam
ver o sangue fritando nas minhas veias. Todos viam as minhas veias. Todos me
viam. Meu corpo, cansado, transava incessantemente com a minha mente
usurpadora, que, daquilo, queria tirar proveito de cada segundo. Cada gota.
Cada acidez. Cada doçura. Se o mundo visse o que eu via, ninguém mais trabalharia.
Ninguém mais perderia tempo de vida procurando razão para as irracionalidades
do destino. Nos alimentaríamos de lagartas azuis que, quando borboletas
virassem, rasgariam nosso estômago, sendo
livres para abrilhantar nossos olhos com as cores
que desenhariam flores
que se transformariam em amores.
Os pássaros costurariam nossos cortes e, ao invés de dor,
sentiríamos prazer. As passagens estavam compradas, bastava querer. As malas
estavam prontas, bastava partir. Os meus dedos esperavam os seus, bastava
trançar.
Acordei no seu colo, abraçado às suas pernas como se você
fosse fugir dali a qualquer momento. Seus olhos riam de mim. O calor do seu
corpo congelava a minha respiração. Eu via luzes em você. Meu olfato seguia o
seu cheiro como os cachorros são levados em êxtase pelo perfume de um bom
pernil. Eu queria te mastigar. Te prender dentro de mim e te vomitar todas as
vezes que precisasse olhar para seus olhos de novo, só pra me acalmar. Eu
queria os seus cabelos dentro do meu nariz, sua língua entre meus dentes, seus
olhos nos meus lábios, minha boca no seu umbigo, minhas orelhas na sua boca,
seus quadris nas minhas mãos, meu colo em seus braços e a sua cintura entre as minhas
pernas. Tudo ao mesmo tempo. Assim. Ao mesmo tempo e devagar, curtindo a desformidade
do seu rosto sem rugas; o rosé dos seus mamilos baratos, desenhados nos seus
seios que não tinham começo nem fim; e a umidade cálida da sua língua felina
que caçava na minha pele as sensações que já não cabiam em mim. Eu podia
adivinhar que aquilo era loucura e rezar, herege, pedindo para não terminar.
Mas o que eu mais queria era o fim. Seu corpo sorriu mais uma vez. Sorri de
volta. Duro, imaturo, quase sem forças pra dizer que...
não disse.
Não podia dizer.
Não queria dizer.
Não sabia dizer.
Curtimos o silêncio mentiroso, que ricocheteava espasmos no
meu braço direito, enquanto procurávamos sentir a pele um do outro de todas as
maneiras possíveis: peito a peito, palma a palma, pé a pé, coxa a coxa, boca a
boca e até olho a olho. Sim, olho a olho, no singular. Nos olhávamos
sinceramente, um de cada vez. Primeiro o direito, depois o esquerdo, depois o
tesão. Nossos dedos brincavam entre si. É impressionante a força da energia dos
nossos corpos em sintonia. Mesmo que eu não quisesse nunca mais te amar, nunca
mais te beijar, nunca mais te abraçar pra sempre... aquela energia era o amor
do nosso momento, amor de horas contadas, amor à conta-gotas, amor à nova moda.
Não, eu não te amo agora, mas eu te amei ali. E você, também sem querer,
me amou de volta.
Não mais agora.
Naquela hora.
Acordei de novo. Dessa vez na minha cama. Sozinho. O relógio
contando passo corretamente. O sol posto. A lua cheia. As estrelas não cantavam
mais. Os pássaros não sorriam. Os olhos não se iluminavam e a música não bordava
rendas francesas no ar. Um alívio ensurdecedor golpeou meu coração e,
sobretudo, meu cérebro. Acabou. Desfiz as malas calmamente, separando na
estante o lugar de cada lembrança trazida da viagem. Você era um souvenir de
porcelana, com a ponta das duas asas lascadas pelo impacto do desajeito do
bagageiro. Ficava linda ali. Desobrigado de te ver de novo e de te querer por
perto mais uma vez, abri a porta de casa e segui para o guichê. Esvaziei os
bolsos no balcão, deixando cair no chão uma foto amassada nossa. Guardei os
clipes, os papéis de chiclete de menta e a camisinha vencida. A atendente me
olhou com o desdém de quem nunca pôde sair dali para uma viagem e sussugritou:
- Destino?
- O mesmo da noite passada.
- Ida e volta?
- Só ida, por favor.