terça-feira, 28 de maio de 2013

Do amém ao amor

"Amém", disse o padre pela terceira vez no dia, que seguia por tantos milhares de dias iguais que seria seguido por outros tantos parecidos. Um ato, um rito, um fato. "Amém" porque se acabou. "Amém" porque a palavra foi enviada. Pobre do padre que não goza dos atributos tecnológicos para ter certeza de que a mensagem, depois de enviada, foi recebida. Os sacerdotes, os bispos, os papas, as mammas, os olhos empoeirados das estátuas dos santos sob mantos coloridos e tão, tão bonitos parecem pouco se importar com tal detalhe.

Na aula de latim, o professor contou uma curiosidade muito curiosa, dessas que marcam nossa memória para sempre. Verdade verdadeira seja dita, das aulas de latim só me lembro do que não caía na prova. Disse ele, o professor, que a palavra "missae" significa "a palavra foi enviada" - era a última palavra a ser dita no ritual; a palavra mais esperada, já que quase todos não entendiam lhufas do que o representante divino cantava em latim clássico, de costas para eles, em sinal de respeito ao invisível ali no altar. Missa é o fim, então? Amém! E amém? Amém é o fim também?

 A palavra ecoava na minha cabeça com o mesmo som fanho da voz do padre italiano da paróquia da minha mãe. Prendia o ar e soltava o som pelo nariz, num "a" demorado, preguiçoso, sem pressa nenhuma de ver seu fim - "aaaaaaaaaa-méeeeeeeeeem". Pensava, às vezes, que ele era um cabrito. Sei lá, coisa de criança que corre pelas passarelas externas da igreja atrás do tio da pipoca que morreu no ano passado. Os óculos de fundo de garrafa deixavam seus olhos parecendo duas jabuticabonas prontas pra explodir! Achava, eu, que ele podia ter saído de um desenho animado e, sabe, desenhos animados nunca morrem. Mas o tio da pipoca morreu. Amém pra ele, então? Amém!


Eu sei que, pela terceira vez no dia, o padre disse "amém". E por um descuido dos meus ouvidos preguiçosos, minha mente fez pontuação errada e meu raciocínio trocou a entonação daquele discípulo de Deus. Foi coisa de um segundo e, pronto, toda uma vida havia sido mudada. O padre disse "amém", e eu, tola que sou, entendi uma ordem: "amem". "Que se amem os fiéis", imaginei eu que o padre quisesse dizer. Desde então, troquei "amém" por "amor" e nunca mais "amémnizei".

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Chá pra lá


Não, eu não gosto de chá. Nem de cidreira, nem de erva-doce, nem de cogumelo. Podem me matar, mas, por favor, sem Matte - eu não gosto de chá. Não me venha com essa água quente numa caneca atraente com um saquinho pendurado no barbante. Não me venha com sete ervas emagrecedoras, nem com dias de frio, nem com minutos de calma. Eu não quero me acalmar. Eu não quero chá. E não me olhe com essa cara de desdém de quem não tem mais a quem odiar. Traga uma bebida mais cheirosa, um gosto mais encorpado, uma caloria mais vigorosa. Traga um capuccino, um café, uma cerveja, uma tequila ou uma pinga. Ou não traga nada. Venha sem bebidas, sem cardápio, sem roupa e sem vergonha. Venha. Mas com chá, não me convenha. Traga seus medos mais bobos e os deixe no tapete da porta da sala, junto com seus sapatos e o seu pudor. Entre com seus pecados mais sujos e decore minha castidade com a sua cruz esquálida de um verão passado no qual eu sei, eu sei o que você fez. E sem chá de canela, nem de camomila, nem de Daime, nem de amor. Porque se chatice fosse bom, não começava com chá. Não se começa nada com chá. Não se me começa com chá. Não se me come com chá. Deixe esse xôxo morno e sem gosto expressivo para as nossas avós. Ou deixe pra quem gosta, adora, ama e se derrama numa porção de chá de boldo, chá de limão com mel, chá de xaxim. Saque o sachê do bolso e vá para outra freguesia. E não adianta usar outras línguas, outras melodias, outros sabores. Não curto o sabor ralo de um chá verde, nem amarelo. Chá de bebê? Deus me livre - eu me nego! Meu negócio é café preto, forte, quente e quase sem açúcar. Daqueles que te deixam com a ponta da língua ardida o resto do dia. Que te fazem lembrar da quentura angustiante, do cheiro sedutor e, sobretudo da dor. Se despeça e leve esse chá-to pra lá. Meu bem, eu não gosto de chá.

sábado, 20 de abril de 2013

Carta ao perdoado


Era uma terça-feira. Final de tarde. Naquelas conversas despretensiosas de um pôr-do-sol amargo, daqueles que pontuam o fim de um dia muito produtivo de trabalho com um suspiro desabador. Foi assim. Simples. Bobo. Quase imbecil. Te descrevendo minuciosamente para um amigo de festas da faculdade, eu te encontrei. Te descobri. Arregalei os olhos. Arregalei a boca. Arregalei o coração. Percebi, em meia dúzia de palavras, o quão absurdamente grande e forte é o sentimento que bate nesse peito murcho por você. Não que eu ainda não soubesse, viu? Vou te contar um segredo, mas naquele dia chuvoso de algum mês de 2002, minha gagueira tomava conta de todo o meu ser. Eu tremia. Soluçava. Chorava. Convulsionava. Abria a boca e as palavras não soavam. É... isso mesmo, igualzinho àqueles pesadelos nos quais a gente grita sem voz enquanto cai do precipício. Dez anos. Dez anos se passaram depois do meu primeiro “eu”, meu primeiro “te”, meu primeiro “amo”. Eu te amo. Sussurrado, amedrontado, esmagado entre os átrios direito e esquerdo. Porra, eu te amo! Gritei, enfim, mas sem “porra”, porque naquela época não era acostumada a falar palavrões. Mas, viu, nasci te amando, homem de Deus! Não escolhi. Não pedi. Cortaram meu cordão e “puff”: te amei. Acontece, meu bem, que perdão não tem nada a ver com amor. Nada, nadinha, viu? Passei por trancos e barrancos tentando te encaixar nos padrões que o mundo me encaixou. EN-CAI-XAR. Eu queria te enquadrar. Fazer de você mais um boneco engravatado e sem paixão. Quantos mares de lágrima não desperdicei? Quantas contrações no peito? Quanta dor, meu amor, quanta dor? Até perceber no fundo daquela caixa escura em que eu me escondia, um fio de luz. Saí. Fui ao seu mar navegar. Naquele mesmo mar que lagrimei. Sorri. Te vi. Sem âncoras, você também navegava. Pulei no seu barco. Te guiei; me guiei. Te encontrei; me encontrei. E foi numa conversa boba de fim de tarde, te descrevendo como meu porto seguro, confidente e melhor amigo que eu me dei conta de ter me livrado da única âncora que me impedia à felicidade plena: o não-perdão. Ô, amor da minha vida, eu te perdoei. Após dez anos de amor declarado, regado a outros dezesseis de imperdão injustificado pelas amarras do que os outros pensam de nós, perdoei. Era mais do que amor. Era perdão. Era sublime. Era PERDÃO. E eu te perdoei sem dor, sem medo, sem culpa... do fundo do meu “tica-tica-bum”. TICA-TICA-BOOM!
Era o final de uma tarde produtiva quando eu te encontrei. Te amei. Te perdoei. Meu melhor amigo, meu confidente, meu porto seguro e, com muito orgulho: meu pai.

domingo, 7 de abril de 2013

Quando a tristeza bate


(Sugestão: ler ouvindo o álbum “Ventura”, LH)


Aconteceu comigo.

- São seis e quinze.
- Sério?
- Sério.

E aconteceu. O sol espreguiçava-se por trás das nuvens. Talvez trocasse de roupa. Ia rasgando as arestas recortadas de um céu sem azul. Eu também estava cinza. Ia passando um café quando o filtro de papel rasgou no meio e entornou meu pó. Desisti. “Deixa isso pra lá”. Deixei. Meu coração fazia caretas enquanto eu sorria. E iam acontecendo umas mentirinhas entre esses lábios ressecados pelo excesso de rancor. A amargura batia na boca do meu estômago e voltava. Parecia que eu tinha comido aquela merda daquele pó puro. Eu tava fodida. Enquanto tirava a calcinha, dei play naquela animada... qual é o nome mesmo? “I feel so close to you right now”. E coisa. E tal. Também era mentira. Enrolei-me na toalha e meti logo de cara “A Outra”. Los Hermanos. É, eu tava fodida. A chuva começou e finalmente entendi: o sol tomava banho. Enquanto Camello dançava com outro par pra variar, eu sambava a dois por mim embaixo do chuveiro morno, amor. Bateu aquele preto e branco no meu olhar. Quase chorei.

- São sete horas.
- Já?
- Já.

Esfregava a bucha vegetal nos braços, nas pernas, nos seios, na cara. Enquanto eu quase chorava, um coração batucava fraco do lado de fora de mim, mas precisava disfarçar. Padecia de um vazio bobo e raso, criado à toa por mim. Carecia respirar. Antes carecia perder o ar. Prendi a respiração e nada chegava perto do que carecia. Emburreci, e ainda eram sete e dez de um dia “Black & White”.

“Caralho, mas que merda!”. E nenhum café forte pra salvar. Dei dois tapinhas na cara inchada de sono, sequei os membros de qualquer maneira e me enfiei no look mais básico do meu amontoado de roupas da semana. Enchi meus olhos de óculos de sol. Chovia. Ficou pra trás, no corredor das minhas veias atordoadas, a melodia angustiada de um cara estranho. E eu só queria um colo. Podia ir à puta que me pariu. Um cafuné. Seguido de um café bem quente pra queimar a língua e fazer arregalar os olhos; deixar-me ardendo o resto do dia pra esquecer das outras dores; perder o paladar; ter uma desculpa pra não beijar.

É que a felicidade quando bate, explode. Estilhaça a gente desde a pré-eliminar. E, depois do gozo, a gente elimina. Se não prelimina, prevalece; permanece. E vai nos fazendo padecer de outros orgasmos. Nos mesmos organismos. Naquela desorganização.
Depois do meio-dia, meus cabelos ainda estavam molhados. Os lábios ainda secos. Os ossos, em farrapos. Eu mendigava a alegria das pessoas, mas é foda sorrir de volta. Meu celular vibrou no bolso uma mensagem desconhecida:

- Já são duas horas.
- Mesmo?
- Mesmo.
- Vem me amar?
 - Hoje não.
- Mas tô com saudade.

Não ri. Deixei aquele verbo “amor” apodrecer na minha caixa de entrada. Eu não queria ser feliz assim. Não queria ser feliz. Porque se eu deixasse todo o peso daquele cinza sair das minhas costas, corria o risco até de voar. Flutuar. Zanzar pelo céu sem destino. E pra onde eu queria ir, não poderia. Nem todas as portas e braços e pernas se abriam para o meu sorriso; meu amor; minha saudade. É que a felicidade, quando bate, é atentado terrorista. E hoje eu não era mulher-bomba. Era sobrevivente de um campo de concentração chamado orgulho.

Aconteceu comigo e eu quase chorei. E enquanto eu quase chorava, desenhava com meus lábios um coração em volta do seu umbigo gostoso. É que a tristeza quando bate, arrebenta. E eu tava mesmo fodida. Arrebentada. Acidentada. Engessada. Deixando o verão pra mais tarde porque assim tá bom, com o que sobrou.

E quando te perguntarem de onde vem a calma daquela mulher, você vai correr a memória nas nossas conversas de botas batidas de quando éramos um par e responder, zeloso do nosso sofrimento bonito: “do lado de dentro”.

domingo, 31 de março de 2013

O vaga-lume

Ventava. No meio da cidade, no centro, no oco, no coração cinzento da massa de concreto, morava um cinema. Sala única, duas sessões, três opções de filme. Fomos assistir a “Amour”, na esperança romântica de que entenderíamos o filme. Era francês. Era bonito. A máquina de pipoca estava quebrada e eu paguei entrada inteira, podendo ter simplesmente mentido – ninguém conferia os documentos. Enquanto o filme não começava, aproveitávamos para observar a estranheza charmosa das pessoas que se acomodavam nas poltronas. Estar distante uma das outras era uma tradição, uma lei, quase um ritual.
Sonhando com o momento em que as cenas desconexas daquele longa-metragem começassem a fazer sentido, minhas pernas mantinham-se inquietas. Cruzava para um lado e para o outro. Finalmente, na sessão doméstica de fisioterapia, entendi uma sequência em francês: “une, deux, trois, quatre, cinq, six, sept, huit, neuf, dix”. “Vamos até quinze”, disse ele. E lá se foi de novo a minha concentração. Désolée. Eu estava désolée. No entanto, para felicidade minha e desespero do meu tédio enrugado, minhas suspeitas se confirmaram: no meio da tela escura, quase negra, piscou uma luz. Um pontinho tão pequeno e leve que eu poderia pegá-lo com a ponta dos indicadores. Talvez fosse um led, colocado ali propositalmente para me distrair. Talvez estivessem testando o poder de observação de todos ali naquela sala. Mas, aparentemente, só eu percebi o movimento sutil daquele pontinho iluminado. Era um pisca-pisca solitário, perdido, quase desesperado. Provavelmente o filme também não o agradava. Nem o francês. Nem o “amour”.

Te cutuquei.

- Você viu?
- O quê?
- Ali!

Era um vagabundo. Ou vagabunda. O certo é que vagava naquela sala antiga, piscando a bunda para nós. Uma vez, quando era pequena, comi um vaga-lume. Era fim de tarde, começo de noite, aquela hora do dia que não se sabe definir bem o que se é. Os meninos jogavam futebol no campo, não eram muitos. As meninas comiam brigadeiro na rede. Talvez falassem dos meninos. Eu comia vaga-lumes. Na verdade, eu só os caçava pelo prazer de vê-los piscando dentro do pote de azeitona sem rótulo. Acendendo aquela bundinha luminosa para mim. Refletindo a luz sem-vergonha nos meus olhos desavergonhados. E eu comi assim, sem dó. Sem medo. Sem arrependimento. A gosminha explodiu na ponta da minha língua e eu corri para o espelho do banheiro da fazenda, acreditando piamente que tinha me transformado em uma fada, um elfo ou em um vaga-lume também. No fundo, eu esperava mesmo é poder cuspir luz em todo mundo! Quando voltei para a varanda, emburrada, soltei os vaga-lumes e me juntei às meninas. Ali, na luz forte do corredor de fora, vaga-lume nenhum pisca. Vaga-lume só tem graça quando pisca no breu. E hoje fora assim. Enquanto a natureza uivava no coração de pedra da minha cidade, um vaga-lume piscava na sala do cinema quase mudo. Quase sem cor. Quase sem quase. Voava de um lado para o outro, sem achar saída. Sem fazer sentido. Sem entender o amor contracenado naquelas cenas doloridas de um casal sem fim. Saí do filme sem reação, sem comentários, sem expressões. E o que me chocava não era o choque, nem a tristeza, nem o vaga-lume, nem o amor. O que me chocava não era o amor. Talvez eu fosse menina demais pra entender; pequena demais pra entender que comer um vaga-lume não ia me iluminar se eu não pudesse ser iluminada.

Uma vez, quando era pequena, comi um amor.

domingo, 17 de março de 2013

Untitled acid


Havia algumas horas que a viagem tinha acabado, mas ela não saía de mim. As pessoas ainda conversavam eufóricas e a música ecoava dentro da minha cabeça, bombardeando ondas sonoras por toda a extensão do meu corpo, que tremia. Tremia e voltava. Respirava. Os minutos passavam na velocidade das horas e, de repente, a vontade imensa de tornar aquele momento infinito transformou-se no tesão imediato por dar fim. Dar fim a você. Dar fim a mim. Dar fim ao mundo que construímos sem tijolo nenhum, apenas desenhando com neon na luz negra os degraus das nossas vidas. O brilho das meninas dos olhos das meninas era encantador. O dos meninos era ofuscante. E eles se cruzavam com a luz do sol, que cutucava os poros da pele tão sensível ao toque. Todos podiam ver o sangue fritando nas minhas veias. Todos viam as minhas veias. Todos me viam. Meu corpo, cansado, transava incessantemente com a minha mente usurpadora, que, daquilo, queria tirar proveito de cada segundo. Cada gota. Cada acidez. Cada doçura. Se o mundo visse o que eu via, ninguém mais trabalharia. Ninguém mais perderia tempo de vida procurando razão para as irracionalidades do destino. Nos alimentaríamos de lagartas azuis que, quando borboletas virassem, rasgariam nosso estômago, sendo

livres para abrilhantar nossos olhos com as cores
que desenhariam flores
que se transformariam em amores.

Os pássaros costurariam nossos cortes e, ao invés de dor, sentiríamos prazer. As passagens estavam compradas, bastava querer. As malas estavam prontas, bastava partir. Os meus dedos esperavam os seus, bastava trançar.
Acordei no seu colo, abraçado às suas pernas como se você fosse fugir dali a qualquer momento. Seus olhos riam de mim. O calor do seu corpo congelava a minha respiração. Eu via luzes em você. Meu olfato seguia o seu cheiro como os cachorros são levados em êxtase pelo perfume de um bom pernil. Eu queria te mastigar. Te prender dentro de mim e te vomitar todas as vezes que precisasse olhar para seus olhos de novo, só pra me acalmar. Eu queria os seus cabelos dentro do meu nariz, sua língua entre meus dentes, seus olhos nos meus lábios, minha boca no seu umbigo, minhas orelhas na sua boca, seus quadris nas minhas mãos, meu colo em seus braços e a sua cintura entre as minhas pernas. Tudo ao mesmo tempo. Assim. Ao mesmo tempo e devagar, curtindo a desformidade do seu rosto sem rugas; o rosé dos seus mamilos baratos, desenhados nos seus seios que não tinham começo nem fim; e a umidade cálida da sua língua felina que caçava na minha pele as sensações que já não cabiam em mim. Eu podia adivinhar que aquilo era loucura e rezar, herege, pedindo para não terminar. Mas o que eu mais queria era o fim. Seu corpo sorriu mais uma vez. Sorri de volta. Duro, imaturo, quase sem forças pra dizer que...

não disse.
Não podia dizer.
Não queria dizer.
Não sabia dizer.

Curtimos o silêncio mentiroso, que ricocheteava espasmos no meu braço direito, enquanto procurávamos sentir a pele um do outro de todas as maneiras possíveis: peito a peito, palma a palma, pé a pé, coxa a coxa, boca a boca e até olho a olho. Sim, olho a olho, no singular. Nos olhávamos sinceramente, um de cada vez. Primeiro o direito, depois o esquerdo, depois o tesão. Nossos dedos brincavam entre si. É impressionante a força da energia dos nossos corpos em sintonia. Mesmo que eu não quisesse nunca mais te amar, nunca mais te beijar, nunca mais te abraçar pra sempre... aquela energia era o amor do nosso momento, amor de horas contadas, amor à conta-gotas, amor à nova moda. Não, eu não te amo agora, mas eu te amei ali. E você, também sem querer,

me amou de volta.
Não mais agora.
Naquela hora.

Acordei de novo. Dessa vez na minha cama. Sozinho. O relógio contando passo corretamente. O sol posto. A lua cheia. As estrelas não cantavam mais. Os pássaros não sorriam. Os olhos não se iluminavam e a música não bordava rendas francesas no ar. Um alívio ensurdecedor golpeou meu coração e, sobretudo, meu cérebro. Acabou. Desfiz as malas calmamente, separando na estante o lugar de cada lembrança trazida da viagem. Você era um souvenir de porcelana, com a ponta das duas asas lascadas pelo impacto do desajeito do bagageiro. Ficava linda ali. Desobrigado de te ver de novo e de te querer por perto mais uma vez, abri a porta de casa e segui para o guichê. Esvaziei os bolsos no balcão, deixando cair no chão uma foto amassada nossa. Guardei os clipes, os papéis de chiclete de menta e a camisinha vencida. A atendente me olhou com o desdém de quem nunca pôde sair dali para uma viagem e sussugritou:

- Destino?
- O mesmo da noite passada.
- Ida e volta?
- Só ida, por favor.

domingo, 3 de março de 2013

Pra me esquecer


A manhã daquela segunda-feira prometia um dia de céu aberto e agenda cheia. Daqueles que odeia acordar cedo, pulou da cama 15 minutos atrasado: não ouvira o despertador do celular. “Preciso trocar essa porcaria!” Tocava muito baixo, isso era fato. A tarde, no entanto, virou de ponta-cabeça seus planos encalorados de suar feito um porco, trabalhando todo torto com o notebook no colo: choveu. Uma linda nuvem cinza se aconchegou em cima do seu telhado e começou a roncar o estômago em cima dele. Trovejou. Tempestou. Sussurrou meia dúzia de saudades e desabou em água. Água limpa o que ficou pra trás. Leva a sujeira embora. Leva o passado e o presente o futuro, se deixar. E ele deixou. Soltou seu barquinho de papel na enxurrada da sarjeta e assistiu o adeus sem nenhum pesar. Se tivesse uma câmera, até filmaria. Respirou em paz, como se um corte fundo estivesse se enrasando. Vai que eu acredito? Vai que ele acredita também... e toda aquela dor sem razão de ser fosse embora da gente como um espirro assustado. Desenhou suas próximas tatuagens nas costas de um documento oficial, esboçando e borrando rabiscos bobos com o mesmo lápis 6B que guardou da lista de material escolar da sétima série. “A professora de artes era uma idiota”, lembrou. Lembrou também das telas amareladas de nanquim que desenhara em qualquer aula dessas. Dessas da professora idiota. Abriu uma cerveja trincando. Não tinha borracha para apagar os erros da sua arte sublimemente grotesca. Tomou um gole. Curtiu o espirrinho chocho do anel da latinha. Borrou a capa do seu currículo com a bunda da mesma latinha. Pareciam lágrimas, mas não eram. O amargo do líquido descia como se doce fosse. E era. Escutou uma daquelas músicas nostálgicas que dá vontade de transar. Deu. Não transou. Devorou outra cerveja e perdeu o rumo do trabalho. Voltou. Lembrou do barquinho outrora abandonado. Pensou em resgatá-lo. Teve preguiça. Voltou ao trabalho novamente. O dia estava quase acabando, quando uma coceira incontrolável na nuca o fez lembrar-se de mim. Tomou um banho morno, morno como seu amor. Enrolado na toalha, deu uma olhadinha pela janela e sentiu a humidade relativa do ar se espalhando pelo seu pulmão. Sorriu. Passou um perfume naquela mesma nuca e esqueceu de me amar. Amou-se só. E foi ser feliz. E só.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Das idas

Minha mãe me ensinou a lavar a louça antes de partir. Secar os pratos, dobrar as roupas, varrer o chão. Não deixar pendências, sabe? E eu, tomada pela teimosia ou, muito mais provavelmente, pela preguiça, nunca dei ouvidos. Botava a trouxa de roupas amassadas nas costas e ia. Simplesmente ia. Com ou sem rumo, deixando um rastro de bagunça pra trás. Escondendo às costas toda a minha confusão. Fazendo de conta que podia ser feliz assim. Mãe disse que era cedo. Pediu umas horas, uns dias, uns meses. Sempre foi cedo demais. Logo eu, que nunca acordei com as galinhas, logo eu, eu parti. E, no meio do caminho, um pombo-correio, um sinal, um pedido pra voltar. Mas eu não volto. Posso andar em círculos, errar o destino, me perder na bifurcação. Mas, voltar, não posso. As costas doem, olho para trás. Sinto que abortei outra missão. Porque partir dói. Porque abortar parte. Porque despedidas deixam um vazio ensurdecedor, que abre espaço para o silêncio da paz que sempre está por vir. E vem. Vagarosa, sublime, macia. Ela se aconchega nos cantos do vazio do adeus. Ela planta uma semente no vácuo abortado dentro de nós. E, enquanto eu continuo minha caminhada, sinto o espaço entre meus dedos serem preenchidos por um calor aconchegante que vai massageando meus instintos até o pé da nuca. Um sentimento. Sente? Sabe? Daí sim eu posso voltar. Tomo um shot de pinga, mordo um pão dormido, durmo um sofá rasgado. E quando eu acordar de novo, pronta para mais um aborto, passo um espanador nos móveis pra disfarçar a sujeira e não deixo que tirem nada do lugar. Esboço. Disboto. Boto. Eu boto a trouxa de roupas amassadas nas costas e vou. Simplesmente vou.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Pelo prazer de engordar sorrindo


Não, eu não vou começar a dieta amanhã. Quero te comer cada pedaço sem nem ao menos mastigar. Vou engolir seus olhos, suas orelhas, seu cabelo, sua boca. Vou passar mal. Quero ser julgada pela igreja, tendo pecado todos os sete milhões de pecados que eu puder pecar. Quero que me chamem de herege e me queimem na fogueira. Quero ir para a forca. E que a força dos seus braços não seja o bastante para se desvencilhar de mim. Não quero um pio. Nenhuma reclamação. Nenhum olhar 43, nem 69, nem 007. Vou cuspir seus dentes enquanto palito os meus e, sem desespero, você vai gostar. Vou chupar seus ossos e a carne também. Lamber os beiços, morder os lábios, sugar a língua. Vou cortar sua pele com faca de serra e ponta redonda, daquelas de passar a manteiga no pão, só para demorar mais. Não vou jogar fora nem as unhas, quero que elas me arranhem por dentro e que seus dedos gentilmente me arranquem os medos que me impedem de ficar. Quero sua artéria aorta pulsando dentro de mim. Quero me envenenar das suas venosas. Quero adoçar a sua bile antes de te deglutir. Quero te temperar com canela e jogar os cravos fora. Quero ser a borboleta do seu estômago; a rosa vermelha dos seus instintos; a orquídea branca do seu coração. Quero que seus olhos vejam o que ninguém nunca viu. E quando eu chegar ao átrio, que o ventrículo não esmoreça, que o tesão não desobedeça e o amor não desapareça. Que os seus músculos me destruam e eu te vomite sorrindo. Que você ressuscite odiando. Que eu não me despeça chorando. Que você me tempere com sal a gosto e esqueça o banho-maria. Que me engula, me lamba, me chupe, me coma, me tenha. Que a gente engorde e que corramos por três noites seguidas, livrando-se do mal pelas gotas de suor.
E que a minha dieta fracasse todos os dias, pra eu poder começar tudo outra vez.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Espresso de domingo


Fim de temporada. Passa-se um café no meio da tarde de domingo. Doce, fraco e morno. Como ela, talvez, deveria ser. O pão adormecido implora por um mergulho no leite. Ela, um mergulho no mar. Ou então, num rio. Doce, fraco e morno. Imagine só quantos problemas seriam evitados se a vida fosse aquele café: doce, fraca e morna. Deseja um trago, um gole, mas já passou das seis. Precisa fazer do mundo uma passagem leve e saudável, como nos livros de culinária para solteiros. Precisa amar o próximo. Precisa querer bem. Precisa de uma dieta balanceada, sexo seguro, drogas legalizadas e planos para o futuro. E o que fazer se o futuro for agora? A cigana disse que era o seu dia de sorte; que a linha da vida da sua mão é longa; que os dedos são curtos; que a maré baixou. Mas ela só quer deixar o perfume do café amaciar os cantos duros do seu lar. Ela quer lar. Quer lá. Aqui. E Mi. Fá, Sol, Lá, Si. Nada de Dó. Nada de não. Só um pouco de água fresca e sabão neutro pra lavar a alma e salvar dos pecados. Esfregar com escova de cerdas macias. Esfregar. Esfregar. Esfregar. Amaciar. Estender no varal. Amanteigar a bolacha de água e sal. Cochilar no tapete. E quando o sol se por, a tarde refrescar e a lua vier coroar o céu de estrelas; e quando a vida finalmente for aquele café, ela vai espreguiçar-se, tirar a camisola e passar o seu último espresso corto: amargo, forte e quente. Como ela, definitivamente, é.