domingo, 23 de dezembro de 2012

Merry Christmas


“No euphoria. No ecstasy. No drama” – ela disse enquanto fechava os olhos e respirava fundo, tão fundo como se aquele fosse o último passeio de oxigênio pelas suas hemácias. Ainda estava escuro, mas o sol ameaçava os primeiros tons de lilás, rasgando o horizonte a fora. Rasgadas, estávamos, a dentro. Felizes também. O ticabum do coração devia estar se misturando ao canto dos pássaros... talvez eles estivessem cantando; talvez eles estivessem. Não ouvimos. Era menos um Natal, era mais um Ano Novo. Em algum lugar, não muito distante dali, crianças dormiam frustradas pelas meias e cuecas e calcinhas e peças de roupas com as quais não se pode brincar. Os pisca-piscas trabalhavam incessantes. A barba postiça do Papai Noel descansava no pé de alguma cama de solteiro amassada. Nós só estávamos felizes. We don’t give a shit, you know? Era apenas mais um dia quente do fim de um dezembro brasileiro. Mais um dia que explodia dentro das veias daquela menina, esquentando seus poros, umedecendo seus olhos, secando seus lábios. No fundo do quadro da sua vida, naquele momento, pintava um círculo cor de laranja. Era Deus decorando nosso olhar, pescando estrelas perdidas, limpando a sujeira do céu, escarrando dentro de nós e cuspindo uma borboleta preta no seu joelho esquerdo. Abriu os olhos marejados. Sorriu. Mas um sorriso tão macio e vagaroso que nem fazia barulho. A boca seca. As mãos trêmulas. O suor escorrendo do pé da nuca até o cocs. No meio do caminho entre o meio dos seus seios e o rosto, os óculos caíram no chão. A convulsão veio meio avulsa, solitária, quase imperceptível, não fosse a espuma da boca e os olhos revirados. Alguém já estava acordado, batendo de casa em casa, pedindo boas festas adiantado. O dono da padaria separava os sacos de papel pardo. A sutileza daquele momento era tão impar e linda, que nem a borboleta se apressou a alçar voo.
Do you Merry...
Christmas?”
No, me.”
Ela disse enquanto fechava os olhos e respirava fundo, tão fundo como se aquele fosse o último passeio de oxigênio pelas suas hemácias. E era. A brisa e o orvalho encarregaram-se de enfeitar seu corpo. Fora encontrada linda, bronzeada e com uma borboleta preta pousada entre seus lábios azuis.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Cuidado, eu quebrei um copo!


Distraidamente, zanzava pela casa só de calcinha e sutiã, procurando alguma coisa doce pra sujar os dentes e fazer um agrado às papilas gustativas da ponta da língua. Observei que a vizinha do apartamento da frente procurava as estrias da minha bunda esquerda, enquanto disfarçava pendurando umas meias no varal de chão – coisa muito brega, aliás, na minha opinião. Só que enquanto ela procurava as sujeiras em mim, eu procurava na casa. Ia rebolando os calcanhares pelo chão, mas, para a minha surpresa, ele parecia limpo. Nada de esfregar os pés um no outro embaixo do chuveiro antes de calçar a sapatilha pra ir embora. Decepcionada, corri os dedos pela estante e me alegrei ao sentir algum pó descansando naquela velharia toda. Sem fotos pessoais ou de família, um ou outro livro amostra grátis do Estadão e um daqueles CDs triplos dos Beatles estrategicamente colocado pra chamar minha atenção. Eu realmente tinha um lado cult enrustido entre os meus tchetchereretchechês que ele conhece bem. Dei risada. Além de ignorante, era burro. E a caça ao tesouro foi perdendo o tesão. Não sei bem em que pedaço do tempo ele ficou perdido, esquecido, adormecido, ignorado. Faltou palavra, ou interesse, ou vontade, ou tudo isso que o mantém vivo, assim. Perdi o foco. Esqueci do pó. Me peguei desapegada, ou tentando, catando minhas roupas como quem cata feijão – cuidando ponta de pé pra não arranhar aquele silêncio vagabundo. Fui me aconchegando entre as peças e, antes de partir, pra não perder costume, goleei dois dedos d’água. Sem querer, apoiei 1/3 do copo pra fora do balcão. Caiu. Quebrou. Espatifou-se inteirinho. Bobagem me preocupar, era copo americano, daqueles baratinhos que o dono do bar da esquina compra pra não gastar. Varri os cacos. Mas, sabe como é... – copos quebrados, corpos amassados –, e sempre fica um vidrinho ou outro miudinho, que periga se enfiar bem no meio da planta do pé. A gente quase nunca vê, mas sente o incômodo agudo e desesperado de quem quer se livrar daquela quase-dor. Por isso varri, e varri tudo – me varri junto, e, cuidadosa que sou, deixei um bilhete em cima do balcão, logo à sua vista, assinado com um beijo de batom marrom: “Cuidado, eu quebrei um copo”.Dias depois, percebi: quebrei um copo, e nossos corpos varri.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Estamos em obras

Era só um lance de escadas, na saída de emergência, atrás da porta corta-fogo. Era um lance de último andar do prédio, de dormir no terraço sereno, de acordar no extintor de incêndio e fugir pelo elevador. Foi um lance de alguma conversa, muitos olhares e tão pouco tato - eu com a boca aberta, esperando o contato, fingindo não ter sono pra te prolongar em mim. Mas era um lance. Foi uma lança. Uma lança que veio sei lá de onde e me prendeu no corrimão, do lado direito e - degrau a degrau -, eu só podia subir! Subimos. Foi um lança. Um perfume. Nossos olhos estalados, nossos corpos misturados, nossas almas retorcidas, nossas línguas congeladas. Congelei. Perfumei. Lancei. Dirão que foi passageiro e que nessas escadas passa qualquer um. Dirão que não vale a pena e que esse abraço é tão quente em todos quanto foi em mim. Dirão tanto, mas tanto que já me esqueci do que vão dizer. Lancei os conselhos escada abaixo e colhi só as palavras que eu queria. Bobagem. Besteira. Um apressado na contra-mão. Mas avancei mais um lance, subi outra escada, pisei mais degrau. Cheguei no terraço; era noite, era fria, era lua linda no céu. Era primavera, era cheiro de dama da noite, era um lança no pano de chão. Um perfume. E foi um perfume tão encorpado, cabeça de lado, sorriso de canto - e eu? - eu só podia dormir. Dormimos. Acordei com a cabeça torta, a saudade quase morta e uma nota pra me agradecer. E eu? Eu acordei em você.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Do verbo "preconceituar"


Chegou meio esbaforida, entre chaves, comprovantes de depósitos bancários e algumas preocupações profissionais. Era só uma passagem – como tudo naquela sua vidinha quase-medíocre – mas aqueles fios de cabelo dourados lhe chamaram a atenção. Sofia então parou, colocou a bolsa e seus pertences na mesa do alpendre, puxou uma cadeira velha e sentou do lado da loirinha, sem dizer palavra. A pequena, curiosa, ficou observando – sem dizer palavra. Até que o silêncio que pairava pacificamente entre os olhos negros das duas foi dilacerado pela velha incendiosa:
- Viu só? Vê se eu mereço isso, Sofia! Não bastasse tudo o que eu tenho pra fazer, ainda pajear essa menina!
Ignorando palavra, Sofia prosseguiu aquele início de relação, suspendendo as maledicências da senhora:
- Oi!
- Oi! – respondeu a menina.
- Tudo bem?
- Tudo!
Sofia sorriu. Engraçado como criança não sabe de falsear as coisas. Mais engraçado como isso a faz pensar em “por que cargas d’água ‘tudo bem, E VOCÊ’?” se a gente quase nunca está realmente interessado no bem-estar da pessoa? Sem muitos rodeios, continuou:
- Qual seu nome?
- Victória.
- Seu cabelo é lindo demais, Victória. Todo loirinho, cheio de cachinhos!
A menina nem tchum. Não sorriu nem agradeceu. Continuou ali, só de calcinha e cabelos cacheados, abraçada no batente da porta da cozinha e mexendo o pezinho direito pra lá e pra cá.
Enquanto isso, a velha falava. Falava, falava e falava. Da menina, dos seus pais irresponsáveis, da vida – dos outros, claro.
Incomodada com a monossilabia da menina Victória, Sofia propôs mais uma ou outra interação e só foi bem sucedida nas cócegas. Fugir de “cosquinhas”, quem nunca? Gargalharam juntas. No meio das risadas, Sofia escutou uma insistência majestosa por parte da velha em repetir a palavra Aids. Sentindo que era ignorada, ela falava mais alto. E mais alto. E mais alto:
 “Mas como pode? Saber que tem essa doença horrível e fazer um filho! Como pode? Como pode?”
Até que Sofia se irritou, pegou suas coisas na mesa, deu um beijo na testa da menina e disse:
- Sabe, você é a soro positivo mais linda que eu já vi!
Infelizmente, a velha não se calou, mas, pela primeira vez e sem “cosquinhas”, Victória sorriu.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Por um breve cochilar


Foi um sopro quente na medula óssea, subindo pela coluna e estalando cada vértebra torta da minha estrutura. Me doeu. Me endireitou. Me arrepiou os pêlos da nuca. E apesar da ilusão morna que se aconchegava no meu coração, como um gato afrouxando a almofada velha para tirar um cochilo, um choramingo me sussurrava: “não é amor, não é amor”. A cada arranhada daquele bichano, um gemido abafado de prazer ecoava dentro de mim. Eu gostava da ardência daquelas unhas, amaciando meus sentimentos, amassando os meus órgãos, vomitando bolas de pêlo na boca do meu estômago. Eu gostava, simples assim – das dores, dos prazeres, das mordidas, dos espaços em branco que ficavam entre um sorriso e outro. Mas você só queria tirar um cochilo dentro de mim. Acompanhava de longe os meus movimentos com os olhos, analisando em qual parte do meu corpo seria mais oportuno roncar, e qual dos meus seios poderia levar pra casa como troféu: o direito ou o esquerdo? Sorrateiramente, escalava os meus cabelos com a ponta dos dedos e procurava descobrir, tentando não ser pego em flagrante, qual shamppoo barato eu resolvi usar pra ir te ver. Ou qual perfume morava no meu pescoço. Ou quantas vezes eu me perdi dentro de olhos tão brilhantes quanto os seus.
Mas não há, simplesmente não há nada que dure para sempre dentro de mim: nem arrepios, nem orgasmos, nem suspiros, nem angústias, nem saudades, nem almofadas amassadas. Então, como de praxe, o sono passou. Você espreguiçou sem fazer barulho, vestiu uma bermuda velha e foi subindo pela minha faringe. Escapou pelos ouvidos, pelos olhos, pela boca e pelos poros. Um vento gelado golpeou minha caixa óssea, descendo em espiral pelo meio do meu ser.
Quando dei por mim, lá estava eu: toda torta mais uma vez.
E uma voz me sussurrava como o alívio de um domingo desobrigado da segunda-feira: “não era amor, não era amor”.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

De um desejo demodê


“Café italiano, por favor” – ele nunca tinha visto alguém fazer um pedido naquele lugar com tanta gentileza. Não que não fosse a primeira vez que estivesse ali, mas, na sua cabecinha machista não era exatamente assim que deveria ser. De fato, havia muito café nas veias azuis daquela menina. E, enquanto ela sorria entediada, ele observava cada mínimo movimento dos seus músculos. Quando a atendente errava a mão do café, ela, gentilmente, depois de um curto gemido, despistava: “não foi nada, não”. E ele ali, curtindo seus passos. Quase sem entender porque continuava naquele lugar, pensou poder estar sendo observado. Disfarçou. Pegou um café – sem açúcar, por sinal. Talvez por nervosismo tenha bebido tudo num gole só. A quentura da bebida inquietante invadiu-lhe as entranhas. As estranhas. Ela teria o quê? Dezesseis, dezessete anos. Mas a aparência confusa daquela displicência angelical começou a realmente tirá-lo do sério. Já fazia horas que folheava revistas, observava quadros, beliscava petit fours e queimava a língua no café da recepção. Até aquele cheiro nojento de acetona parecia lhe apetecer em dado momento da tarde. Ficava tentando imaginar como seria aquele gemido prolongado. Como seria essa menina? Mas, por mais que seus pensamentos gritassem, ele estava a salvo pelos pêlos de sua barba. Toda compreensão era pouco para um homem naquela situação – o noivo esperando o penteado da futura esposa ficar pronto. Diriam por aí que dá azar, mas eles formavam um casal desprendido dessas “demodê-lidades”. O fato é que cada demão que a manicure passava nas unhas daquela menina branca, faziam os sentidos dele pulsarem. De onde ela veio? Pra onde ela vai? O que a faz pintar as unhas dessa cor? Será que é de esquerda? Será que é menor? Será que é virgem? Sabe fazer café? 
Enquanto isso, saía mais um expressinho da máquina da recepção. O salão estava cheio. Todos os bobs enrolados naqueles fios de cabelo desgastados por tintura ou mesmo pelo tempo cochichavam entre si – eles sabiam. As mulheres, em geral, apreciavam a presença dele. “Só um homem gentil acompanha a própria noiva no salão”. “Hmmm... bem gostosinho ele, não?”. “Ele sabe que ver a noiva antes dá azar?”. Só ela não se importava. Nem o seu coque quase caído por cima dos ombros. Nem seu cabelo sem tintura. Nem sua testa oleosa. Nem o seu piercing no lábio direito inferior. Nem sua língua que brincava com ele, vez ou outra, certamente para o aprisionar dentro de suas veias verdes – e azuis. E enquanto a moça corcunda terminava o serviço em seus desengonçados pés adolescentes, ela tentava não borrar as unhas que, entre os seios minúsculos, brincavam com uma nota de cinquenta reais. Eis, então, que ajeitou o troco no bolso da saia jeans, desajeitou o coque no topo da cabeça – sem esticar muito os fios rebeldes –, e foi saindo, arrastando as havaianas-brancas-38 pelo salão. Passou os dedos pelo balcão onde a noiva, que esperava pra ser maquiada, esbarrou os olhos nas unhas, dizendo: “que esmalte lindo! Que cor é?”. E, antes que os olhos dele explodissem no sorriso tímido e nem um pouco inocente daquela menina, ele mesmo respondeu, balbuciando às próprias veias: “café italiano, por favor”.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Peito de silicone também balança


Escovando os dentes, hipnotizada pelo movimento rotineiro de vai-e-vem da escova na boca, reparei que dentro da meia-taça de algodão, preguiçosos, meus seios balançavam. E, por um instante – um milésimo de segundo – esqueci-me que por baixo daquela pele fina e branquela, dançava um peito plastificado. Um pra quem sente, dois pra quem vê. Curiosamente, um outro movimento, esse involuntário, brigava do lado esquerdo da prótese. Ali, escondidinho atrás de 255ml de volume extra, batia meu coração. O único batimento em sintonia com o meu corpo, com meu calor, com minhas confusões. Balançavam os três, entre o canino e o molar, que eu esfregava freneticamente. Gosto de dentes brancos, hálito fresco, boca limpa e língua macia. Talvez, estivesse esfregando também o meu ego e meus sentimentos. Talvez tentasse limpar a sujeira de quem passou por ali e que, ironicamente, tornou-se a minha própria sujeira. Eu viajava. Espumava de ódio e gozo. Meus olhos liam no espelho o julgamento que eu fazia das pessoas que, por livre arbítrio, foram embora de mim – dos meus olhos, dos meus dentes, dos meus peitos. Eu queria resolver os meus problemas ali, naquele momento. Queria cuspi-los na pia, ralo abaixo, e deixá-los escorrer pelos canos com a espuma do creme dental. Não, eu não queria engolir. Eu queria chorar. Queria alguém para culpar. Queria gritar aos quatro ventos o quão bem resolvida eu sou. Mas minha boca estava cheia; meus olhos estavam cheios; meu estômago estava cheio e eu estava farta! Pois não há coisa mais chata do que gente que não sabe o que quer. Não existe incômodo maior do que a insegurança dos outros. Enquanto isso, meus seios pulavam. Pareciam querer dizer qualquer coisa que me pudesse calar. Calei. E entre um ML e outro, entre um batimento e outro, balançando por trás do sutiã, meus três peitos gritavam: antes de tentar resolver os outros, resolva-se.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Pra quem fica

Talvez eu tenha deixado qualquer coisa para trás. Refaço o caminho para tentar lembrar, e cada passo em câmera lenta abre um caminho de epifanias eternas. Reconsidero minhas lembranças. Respiro meus esquecimentos. O que será que eu deixei? Um livro, um anel, dois olhos da cor que todos sabem, mas do tom que só eu consigo enxergar. Giro 360 graus de cabeça. Abraço o travesseiro que vai ficar na cama vazia. Durmo em meus braços e seios e quadris. Cochilo o mundo dentro do meu coração impaciente. Digo-me duas ou três palavras de conforto, chego a suar as mãos. Sôo meu olhar. Invado meu sorriso. Sou toda minha e, por conta disso, ninguém pode saber o que eu deixei. Se foi uma meia suja, um violão quebrado ou uma nota errada. Se foi ela, ele ou se foi tu. Se foram eles e elas e nós. Quem pode saber, que não eu? Estalo os dedos, cruzo as pernas, jogo o cabelo pro lado esquerdo mais uma vez. Tem pedaço de alguma coisa ficando e eu não sei o que é. Talvez não seja nada, e talvez só uma gripe mal curada. Uma pneumonia. Uma desalegria. Um quase-não-amor. 
Sentada na beirada de uma cadeira com assento rasgado, fecho os olhos para ver os seus e enxergar onde eu os perdi. Onde foi que eu os deixei? Embaixo da cama? Em cima do guarda-roupa? Dentro da geladeira? No meio do caderno de receitas? Não sei, não achei. Enfio seu olhar no bolso da calça e a vontade de te ver de novo na nécessaire. Conforme tem de ser, conformo. E pode ser, quem sabe, que qualquer coisa fique pra lá das minhas costas. Pode ser que você fique. Pode ser que eu esteja. E que pra lá de mim, algo tem de ficar pra trás. Afinal, quando a gente vai, algo sempre permanece – ainda que só o porto.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Quando uma criança faz falta


Parada em frente à fruteira, a mosca observava tudo sob seu oitavo olhar. As frutas eram de cera, meio desbotadas, meio descascadas; quase pareciam verdade. As paredes começavam num branco-neve e num branco-neve terminavam. Os objetos não criavam pernas, nem dançavam, nem quebravam asas, nem sorriam: eram o que eram. O tapete ficava no centro da sala: sem segredos, no meiozinho milimétrico daquele lugar quadrado e branco. As cortinas, limpinhas, faziam companhia às janelas sem tela de proteção, que contavam aos outros objetos da casa uma ou outra novidade que viam passar correndo pela rua. Enquanto isso, a mosquoila passeava pelos cômodos à procura de algo que diferisse aquele lugar de tantos outros já visitados. Mas ela, que tanto já havia sentado na merda, entediava-se com tanta limpeza, capricho e esmero. Tanto branco. Tanto cheiro de novo. Tanto silêncio. E era sempre assim quando não era casa de criança. Casa de gente grande é toda cheia de não me toques. Falta colorido. Falta peça de brinquedo no meio da sala pra gente pisar em cima. Falta aquele vômito inesperado depois da overdose de bala. Faltam dedos na parede, e nos espelhos, e na geladeira. Faltam os filhotes de cachorro dependurados nas tetas da cadela que ainda tem útero. Falta gargalhada por nada e choro por tudo; mas daquelas gargalhadas mais fúteis e daqueles choros mais profundos. Falta joelho ralado, canela estourada e pé torcido. Faltam três ou quatro pontinhos no supercílio ou então do lado direito da testa.
Falta um dente.
Faltam dois.
E a mosca pensava assim, que se falta uma criança, falta tanto! E ela, que só moscava, ficou chateada de não encontrar nenhuma caca de nariz grudada embaixo da mesa, sequer uma camisetinha suja de chocolate derretido, nenhum dedo embarreado furando bolo de aniversário e nada de restos de comida caídos no chão depois de uma refeição turbulenta à espera da hora de brincar! Foi embora, a mosca. E foi dizer às outras como é chato uma casa sem criança. E que quando a gente grande tá muito limpinha, é porque falta uma pra sujar de sorrisos a casa da gente.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Não é nada pessoal, mas...



O celular esgoelava: são seis horas, são seis horas! E por algum motivo ainda desconhecido, não me recusei a sair da cama. Vontade faltava, sim – muita. Pairava no quarto uma sensação de fracasso, desestímulo, frustração que poderiam estar por vir. “Eu não preciso passar por isso” – repetia insistentemente a mim mesma. Com o corpo todo resmungando a falta das carícias do edredon na pele quentinha, arrastei-me até o café-com-pão-café-com-pão-café-com-pão. E assim começava uma segunda-feira que tinha tudo pra dar errado. E uma voz cansada implorava que o ponteiro saísse das seis da manhã e pulasse para as seis da tarde. Mas, ali, sentada atrás da mesa do café, esfregando os olhos inchados, foi a última vez em que olhei para o relógio naquele dia.
Não houve muito tempo para o mau humor. Eu sei, detesto admitir, mas às vezes essa minha mania chata de acreditar que o universo conspira em favor da energia dos nossos pensamentos acaba funcionando de vez em quando. Na verdade, funciona sempre, mas eu prefiro fazer de conta que não acredito toda vez.
O fato é que cinco séries colegiais nos esperavam. Desprendidos, desinteressados, desalmados e sem amor. Monstros com sete, oito cabeças e muitas línguas que falariam e falariam e riam e iam e iam! E é bem assim: quando sabemos que a vitória é impossível, nem gastamos nosso tempo nos armando. Foi isso, eu me desarmei. Abri os braços, dei um passo a frente e, ao abrir os olhos, vi as feras fugindo pelos vãos das janelas. De repente meus monstros sumiram, viraram poeira... pó. E eu, vagarosamente, fui varrendo essa sujeira pra fora da sala – ficou lá no corredor. Fomos escutadas, fomos ouvidas, fomos prestadas atenção. Fomos perdendo o medo e ganhando voz. E ganhando ouvidos. E ganhando olhos. E ganhando os sentidos que nos faltavam para enxergar além de pré-adolescentes famintos pelas nossas vísceras! Eles? Eles só queriam atenção. Queriam ser também ouvidos e ter a chance de participar. Eles queriam alguém maior para lhes questionar, mas que fosse do seu tamanho para lhes compreender. Queriam – e querem – alguém que se lembre já ter passado por isso e ainda sinta a dormência na bunda das carteiras duras. E que ignore os padrões. E que ignore as regras. E que ignore os palavrões. E que ignore a não-naturalidade dos tabus do mundo, mas que não os ignore.
Quando me dei conta – se é que já tenha me dado – estava despida. Regia um grupo de mentes pensantes e “queredoras” de mudança e de ação. E, saindo dali, surpreendentemente ovacionada por essas mãozinhas carentes de discussões que os levassem a pensar na própria realidade, tropecei em dois ou três monstros que me esperavam no corredor. Eles queriam entrar de novo em sua morada. Eles queriam fazer parte do meu mundo. Eles queriam que eu não quisesse todo aquele desafio claramente fadado ao fracasso! Mas, às vezes, o que é “claro” demais nos cega; por isso, fechei a porta. E fechada em mim, desmontei – des-mo-ro-nei. Levantei a cabeça: um reflexo irônico ecoou pelas paredes: “Sabe, não é nada pessoal, mas esse seu preconceito é ridículo!”
E eu ri. Eu chorei. Explodi em sensações incomensuráveis. Me inexpliquei. Parecia que eu tinha engolido um pisca-pisca inteiro. Eu brilhava por dentro. Eu sorria, iluminava, espirrava sentido para cada palavra emitida. Eu enxerguei, enfim, razões pelas quais buscava há tantos anos. Eu acendia e apagava e acendia e apagava e: BOOM!
Eu, eu, eu, eu, eu – no meio de tanto lixo, tanta loucura, tanta mentira, tanto escarro, tanta desvantagem, tanto desamor e tantos monstros – eu descobri que precisava, sim, passar por isso. E que eu só precisava de um pouco mais de arte pra olhar ao meu redor e fazer da minha voz, o figurino; das minhas mãos, o texto; dos meus alunos, a plateia; do meu corpo, a expressão; e da minha profissão, o meu palco.
Enquanto as paredes da minha sala fechada suavam palavras eufóricas, meus olhos no espelho – sorridentes – articulavam vagarosamente o que tanto temi ouvir:
“Bem-vinda à licenciatura”

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Das desventuras do voo perdido

Com a caneca de cerâmica entre os lábios, bebia a água gelada. Botava pra dentro. Às vezes só engolia, doutras, mexia dentro da boca com as bochechas em forma de bexiga implorando “aperte-me”. Era difícil explicar pra uma caneca que sensação era aquela.
- A da água na boca?
- Não, não. Referia-me à vida.
E lia e relia o voucher. Era uma passagem perdida. O relógio marcava horas perdidas. E a caneca ali, achada entre os meus dedos. Eu a prendia assim, entre a asa e a palma da mão, com o queixo no meio dos joelhos, em cima da cama; sem pijama. Eu mordia e mordia e mordia a caneca, mas nada me tirava da cabeça essa agonia: “eu perdi o voo”. E o piloto, aquele ingrato, que deveria ter-me esperado. Ou a aeromoça, aquela vagabunda, deveria ter avisado. Ou o tempo, aquele injusto, ele é que deveria ter parado. Mas como tudo na vida já não se justifica mais aos seus trinta e poucos anos, fiquei ali: imóvel, ferida, mordida, emburrecida dentro de mim. Com todas aquelas vozes gritando a culpa que era de todos – menos minha. E eram faltas tão inúteis, e foram minutos tão sem vida e foi uma escolha tão insensata.
- Vai ver é isso aí mesmo!
- Isso o quê?
- Tem dias que a gente acorda burra!
Tem dias que a gente acorda burra. E vai dormir burra e não percebe. Veste-se burra e não se dá conta. Banha-se burra e não se sente. Toma um chá de burrice, e não vomita. É, vai ver foi isso. E a culpa é de tudo isso. Se eu comprei a passagem, se eu quis embarcar, se eu tropecei no salto e, ai, perdi o voo! É de tudo isso a culpa!
- De tudo isso o quê?
- De tudo qualquer coisa que não seja eu, oras!
Foi simples assim. Com o canino em cima do indicador direito, eu sabia que era mentira. Todas as partes do meu corpo sussurravam o meu desdém. E em toda essa simplicidade do momento, caída e recomposta por uma caneca d’água, eu descobri: não fui eu que perdi o meu voo, foi você que errou o seu.










O seu voo fui eu.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Feche a porta, Sofia!

 Sofia era daquele tipo de gente que tem medo de dormir com a janela aberta. Pra não entrar mosquito, nem mosca, nem barata, nem espírito, nem ladrão, nem bicho-papão. Gozado era que ela não fechava as portas. E de nada servia a porta da porta, não fosse trazer as baratas do ralo do banheiro pro seu quarto.
                Dia desses, veja você, Sofia enroscou a blusa na janela, enquanto a fechava. Puxou e tudo foi-se desfiando. Emputecida que só ela, esbravejou: “mas que porra é essa?”. A janela ruiu: suas folhas viraram braços; seus braços, bocas e, então, enjanelou seu discurso:
                - Eu sirvo pra deixar a luz do dia entrar e pra trazer luar fresquinho, que nem que se fosse saído da boca de Deus. Eu permito que entrem borboletas e passarinhos e baratas voadoras. Eu deixo a vida massagear seu corpo e, enquanto dorme, faço o mundo te assistir de camarote. Por mim sai o velho e entra o novo, e nisso você nem pode mandar!
                Antes que Sofia terminasse de começar a entender, olhou pra porta, que, já a postos, abriu os olhos e maçanetou:
                - Nem precisa me perguntar. Apresento-me: porta. Eu sirvo pra deixar a pessoa entrar se você permitir e deixá-la partir, se ela quiser.
                No embaraçado silêncio dos seus livros e cordas e batons e chapéus, Sofia sentiu um buraco no meio do meio do peito. Abriu todas as janelas da casa e, pela porta, não deixou mais ninguém entrar. Destrancada ficava – pra que quem quisesse ainda pudesse sair. 

sexta-feira, 2 de março de 2012

Porque sorrir é "mais"

Talvez a gente não saiba porque nunca tenha experimentado, mas sorrir faz bem. Sem motivos, sem receios, sem retorno. E quanto mais sincero, maior é aquele suspiro que a alma faz de fora pra dentro, feito um sopro nas cordas vocais. Sorrir pros seus próprios olhos no espelho, pro seu próprio sorriso nos olhos de alguém, pro porteiro da faculdade, pra senhora da faixa de pedestres, pra criança da bicicleta, pro funcionário do cinema, pro chocolate da prateleira, pras flores do cemitério, pro cachorro do vizinho, e até por telefone – pra vendedora do telemarketing. Quando a boca se move, espontaneamente, querendo empurrar as bochechas pra perto dos olhos, ah... todo o corpo se move junto! E junto sorri. Assim, juntinho mesmo, se ilumina. E nos faz ser mais gentis e mais saudáveis e mais bonitos e mais felizes e mais mais. Mostra que ser mais é um privilégio; ser feliz, uma escolha; bonito, uma relevância; saudável, uma sorte; gentil, uma virtude; mas, ser um sorriso é um remédio que cura todos os males, feridas, caras feias, jilós fritos, laranjas azedas, buracos na telha, partidas sofridas e tênis sujo de cocô de gato. Então a gente aprende que a gente simplesmente não sabia porque nunca tinha experimentado o quanto sorrir faz bem. E daí a gente vira um sorriso. Porque sê-lo é mais que um remédio-ou privilégio-ou virtude-ou sorte-ou relevância-ou mais: é uma escolha que só mesmo a gente mesmo pode fazer.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

A lanterna dos afogados


Noite dessas quebrei o salto. Cruzei o portão de casa trançando as pernas e mergulhei no quintal.  As estrelas se afogavam em mim. O céu lambava dentro dos meus olhos. E eu? Eu só queria contar nos dedos os náufragos das cadentes. E eu pensava nos náufragos da vida. E eu pensava no dinheiro. E eu pensava no futuro e no dinheiro. E eu pensava nos problemas com os quais eu acabaria quando eu tivesse dinheiro. Então eu escolhi ser engenheira civil. Arquiteta. Advogada. Funcionária pública. Deputada. Tripulante; capitã. Enfermeira-chefe. Cirurgiã plástica.
Acontece que eu coloquei pedra no peito, vaselina na veia, água no barco, dinheiro na calcinha, vontade na privada, ética no lixo e a casa abaixo. E eu criei problemas nos mundos das outras pessoas pra sanar os problemas do meu mundo.  E os problemas do meu mundo... os problemas do meu... os problemas do; problemas?
De repente eu naufraguei nas dores que eu tinha criado, só porque escolhi não ser.
Foi quando eu senti a vida remexer com salto de pau o caldeirão que borbulhava em mim. E eu fechei a lua dentro dos meus olhos, enquanto o mar sassaricava os cantos da janela d’alma.
E eu era uma mulher de pernas trançadas que não queria mais o mundo de ninguém.
Eu naufraguei.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

A palavra além necessária

Ela falava, falava, falava e, enquanto suas palavras sem sentido sobrevoavam o meu quarto, eu fitava o quase não movimento dos seus seios que, com os mamilos daquele jeitinho, friccionados embaixo da regata de algodão lilás, diziam-me tudo o que eu queria ouvir naquele momento. A minha insensibilidade a magoava, eu sabia. Mas aquele cheirinho de corpo amassado, recém acordado ao meu lado, com um pouco de bafo e remela nos olhos – eu confesso – e que ela corria pro banheiro consertar enquanto eu me excitava vendo-a de costas, me deixava sem fala. Ela, nessa fúria incessante pelas minhas palavras, pelos meus sentimentos, pelas minhas expressões, ela... ela pensa que eu ligo para as dobras que formam sua barriga quando ela senta de calça jeans apertada. E, quer saber? Eu reparo mesmo. Reparo na banha, nas celulites, nas estrias, nas camadas. Mas reparo mais nas coxas, nas curvas, nos buracos e lombadas que arrepiam também todas as minhas imperfeições de macho alfa. Ela pensa que eu não sei que ela também se arrepia quando vê um gatão de barriga tanquinho? E que não fica excitada quando eu a irrito com meu silêncio? E que não gosta quando eu calo a sua boca com um beijo ou uma chupada? Ela sabe, no fundo ela sabe que é igual a mim. E que toda a nossa dedicação mútua pelo sexo oral perfeito é maior prova de amor do universo! E que tudo o que ela me fala não faz sentido algum, enquanto ela se troca esbaforida depois do orgasmo, ofendida porque eu dormi ou fumei. Eu até gosto, porque sua voz histérica sempre me acorda quando está pondo o sutiã, com as costas nuas, enquanto eu rio e conto suas pintas pela milésima vez. Ela vai reclamar de novo que não a amo igual, que eu não gosto o suficiente, que não estou mais apaixonado. A sorte dela é que eu não falo. Não falo, não digo, não repito e não proclamo o meu amor. É que se eu falasse tanto quanto ela gostaria, não sobraria tempo pra amá-la tanto quanto é verdade. Não é que eu queira, não é que eu possa ou que eu faça ser assim, mas enquanto abro a minha boca burra pra dizer "Eu te amo", já te amei mais do que possa caber nas aspas e, involuntariamente, desisto de falar.