domingo, 17 de março de 2013

Untitled acid


Havia algumas horas que a viagem tinha acabado, mas ela não saía de mim. As pessoas ainda conversavam eufóricas e a música ecoava dentro da minha cabeça, bombardeando ondas sonoras por toda a extensão do meu corpo, que tremia. Tremia e voltava. Respirava. Os minutos passavam na velocidade das horas e, de repente, a vontade imensa de tornar aquele momento infinito transformou-se no tesão imediato por dar fim. Dar fim a você. Dar fim a mim. Dar fim ao mundo que construímos sem tijolo nenhum, apenas desenhando com neon na luz negra os degraus das nossas vidas. O brilho das meninas dos olhos das meninas era encantador. O dos meninos era ofuscante. E eles se cruzavam com a luz do sol, que cutucava os poros da pele tão sensível ao toque. Todos podiam ver o sangue fritando nas minhas veias. Todos viam as minhas veias. Todos me viam. Meu corpo, cansado, transava incessantemente com a minha mente usurpadora, que, daquilo, queria tirar proveito de cada segundo. Cada gota. Cada acidez. Cada doçura. Se o mundo visse o que eu via, ninguém mais trabalharia. Ninguém mais perderia tempo de vida procurando razão para as irracionalidades do destino. Nos alimentaríamos de lagartas azuis que, quando borboletas virassem, rasgariam nosso estômago, sendo

livres para abrilhantar nossos olhos com as cores
que desenhariam flores
que se transformariam em amores.

Os pássaros costurariam nossos cortes e, ao invés de dor, sentiríamos prazer. As passagens estavam compradas, bastava querer. As malas estavam prontas, bastava partir. Os meus dedos esperavam os seus, bastava trançar.
Acordei no seu colo, abraçado às suas pernas como se você fosse fugir dali a qualquer momento. Seus olhos riam de mim. O calor do seu corpo congelava a minha respiração. Eu via luzes em você. Meu olfato seguia o seu cheiro como os cachorros são levados em êxtase pelo perfume de um bom pernil. Eu queria te mastigar. Te prender dentro de mim e te vomitar todas as vezes que precisasse olhar para seus olhos de novo, só pra me acalmar. Eu queria os seus cabelos dentro do meu nariz, sua língua entre meus dentes, seus olhos nos meus lábios, minha boca no seu umbigo, minhas orelhas na sua boca, seus quadris nas minhas mãos, meu colo em seus braços e a sua cintura entre as minhas pernas. Tudo ao mesmo tempo. Assim. Ao mesmo tempo e devagar, curtindo a desformidade do seu rosto sem rugas; o rosé dos seus mamilos baratos, desenhados nos seus seios que não tinham começo nem fim; e a umidade cálida da sua língua felina que caçava na minha pele as sensações que já não cabiam em mim. Eu podia adivinhar que aquilo era loucura e rezar, herege, pedindo para não terminar. Mas o que eu mais queria era o fim. Seu corpo sorriu mais uma vez. Sorri de volta. Duro, imaturo, quase sem forças pra dizer que...

não disse.
Não podia dizer.
Não queria dizer.
Não sabia dizer.

Curtimos o silêncio mentiroso, que ricocheteava espasmos no meu braço direito, enquanto procurávamos sentir a pele um do outro de todas as maneiras possíveis: peito a peito, palma a palma, pé a pé, coxa a coxa, boca a boca e até olho a olho. Sim, olho a olho, no singular. Nos olhávamos sinceramente, um de cada vez. Primeiro o direito, depois o esquerdo, depois o tesão. Nossos dedos brincavam entre si. É impressionante a força da energia dos nossos corpos em sintonia. Mesmo que eu não quisesse nunca mais te amar, nunca mais te beijar, nunca mais te abraçar pra sempre... aquela energia era o amor do nosso momento, amor de horas contadas, amor à conta-gotas, amor à nova moda. Não, eu não te amo agora, mas eu te amei ali. E você, também sem querer,

me amou de volta.
Não mais agora.
Naquela hora.

Acordei de novo. Dessa vez na minha cama. Sozinho. O relógio contando passo corretamente. O sol posto. A lua cheia. As estrelas não cantavam mais. Os pássaros não sorriam. Os olhos não se iluminavam e a música não bordava rendas francesas no ar. Um alívio ensurdecedor golpeou meu coração e, sobretudo, meu cérebro. Acabou. Desfiz as malas calmamente, separando na estante o lugar de cada lembrança trazida da viagem. Você era um souvenir de porcelana, com a ponta das duas asas lascadas pelo impacto do desajeito do bagageiro. Ficava linda ali. Desobrigado de te ver de novo e de te querer por perto mais uma vez, abri a porta de casa e segui para o guichê. Esvaziei os bolsos no balcão, deixando cair no chão uma foto amassada nossa. Guardei os clipes, os papéis de chiclete de menta e a camisinha vencida. A atendente me olhou com o desdém de quem nunca pôde sair dali para uma viagem e sussugritou:

- Destino?
- O mesmo da noite passada.
- Ida e volta?
- Só ida, por favor.

Um comentário:

Almeida José disse...

Imagens distorcidas, sentimentos evocados com palavras. Viagem literária, um incômodo invejável que durou 4 minutos.

Foram bons 4 minutos. Obrigado pela experiência!

www.conteiro.wordpress.com