domingo, 8 de maio de 2011

Quando alguém que não sabe falar vai embora

Enquanto a mulher chorava, a menina assistia a tudo, sem pressa. A outra cadela farejava os quatro pés da mesa, fingindo desorientação, mas, no fundo, era a única que entendia tudo. Mulher e menina pareciam uma só. “Deve ter sido hemorragia interna” – palpitou a vizinha. A verdade é que a nossa buzunguinha estava ali, nada intacta, mordendo o lençol com os olhos abertos. Não respirava; não mais. Tudo não demorou mais que uma hora: o atropelamento, a dor, os gritos, a lenta morte rápida. Abanou o rabo pra mostrar que estava bem, enganou-nos: era um abano de despedida. “Fizemos de tudo” – gritava a consciência da mulher; “Será que cachorro vai pro céu?” – perguntava a cabecinha da menina. Ouvi dizer, certa vez, que existe um lugar separadinho lá pros nossos buzunguinhos e, quando chegamos no outro lado, somos recebidos por eles com muita festança! Queriam ir junto: despedir, abraçar, pisar no seu rabo pela última vez... mas não dava, tinham de trabalhar. Chamaram o vizinho que ensacou o corpinho peludo e sem vida. E a menina assistia a tudo. A mulher chorava. Pareciam uma só, mulher e menina. Observavam cada cantinho do quintal, procurando uma lembrança feliz. Refizeram o trajeto da paixão da cadelinha. Desaguaram uma tarde inteira de lágrimas por um animal que nem falar sabia. A outra cadela observava as duas e tentava, em vão, alegrá-las. Tudo o que queriam era dormir pra sonhar com a buzunguinha: sem dor, sem tristeza, sem lamento. Só um rabo peludo balançando. A menina ligou pro pai, que mora longe, e perguntou: “Pai, cachorro quando morre também vai pro céu?”. Ouvi dizer que eles caçam preás. Ouvi dizer, também, que eles chamam baleias.
Enquanto a menina chorava, a mulher assistia a tudo. Mulher e menina pareciam uma só: e eram.
Minha baleia foi embora, papai. E agora?
Quando alguém que não sabe falar vai embora, só nos resta abanar o rabo pra se despedir.

4 comentários:

Flores, laetitia disse...

Nunca chorei escrevendo. Muito menos lendo meus próprios textos. Mas a dor vale à pena pra imortalizar a minha buzunguinha.

Odair disse...

E as lágrimas que estavam em meus olhos ao entrar aqui rolaram enquanto lia seu texto...

Sei q muita gente n entende, mas perder um "buzunguinho" é uma dor muito grande, seja pro garoto, seja pro homem

Não esqueço as lágrimas minhas, dos meus pais, dos meus avós pelos meus filhotes q foram embora...

Mas prefiro pensar q há esse lugar especial reservado para eles, afinal q criatura mereceria + um lugar tranquilo do q os cães? Amigos, leais, sempre com uma lambida ou um rabo balançando a hora q fosse...

Vc escreve textos ótimos Lê! E esse é mais um! Dizem q a dor é uma boa inspiração, talvez seja...

Beijos

;***

Unknown disse...

Lê, a cada texto que você escreve, me surpreende mais! Seus textos são ótimos e este, assim como todo os outros, mantém o nível. Acontece, porém, que este é diferente, fala de uma dor que acho q todo mundo um dia sentiu e "re-sente"/revive quando o lê!
Parabéns!!!

Anônimo disse...

Muita gente pode achar "bobeira" mais eu acho mais importante que muita gente. Tenho mais amor por bixo do que por homem, disserto é porque vale mais a pena. Entendo cada pedacinho, e não aguentei Lê, chorei um tantão lendo seu texto.. mais o tempo e a certeza de que você vai reencontrar sua pequena denovo vão amenizar tudo isso. Bjo no coração =*