sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

A notícia que ainda não saiu





Manoel Cardoso dos Santos Júnior. Esse era o nome do corpo estirado no chão. Coberto por uma folha de papelão, deixou um pé do tênis pra trás. Estava de bruços, dormindo gostosamente sem travesseiro. Milhões de cones e luzes vermelhas, nenhuma novidade. Três dias antes havia saído a notícia de uma criança atropelada. Tava correndo atrás de pipa. A culpa é das férias, oras. Onde já se viu soltar pipa na rodovia? Mas o Manoel eu não sei não. Talvez o jornal diga que ele tava puto da vida e resolveu se matar. Talvez o motorista estivesse bêbado, mas é bem improvável; era uma rodovia. Rodovia é pra carro, não é? Então Manoel não tinha carro. É... porque se Manoel tivesse carro, ele teria sido o acusado por homicídio culposo. Manoel era negro, devia ser trabalhador. Ou era um vagabundo, drogado, bêbado. Se jogou no mar do asfalto e só. Quem liga? Rodovia é pra carro, não pra gente. Azar o dele. O jornalista vai pensar ‘mas que ideia, atravessar a rodovia à noite? Bicho burro!’. E Manoel não tinha carro. Às vezes, ele se revoltou porque não tinha carro e resolveu causar problemas sérios a um infeliz motorista de classe média dessa cidade feita de rodovias; feita pra carros. Feita pra quem tem carros. Minuciosamente planejada. Mas, quem liga? Quando viu o papelão, nem você ligou. Achou que era qualquer coisa sem importância. E não é? Quando virou a cabeça pra tentar matar toda sua curiosidade e viu o policial levantando a folha de papelão, você pensou ‘mas que ideia, atravessar a rodovia à noite? (apesar de saber que o soltador de pipas morreu à luz do dia) Bicho burro!’.
Se o nome do corpo era Manoel Cardoso dos Santos Júnior, eu não sei. Se era trabalhador ou vagabundo, você também não sabe. Se ele queria, enfim, deixar o tênis pra trás ou foi a maior cagada da sua vida (ou morte, sei lá, tô confusa), a gente só vai descobrir amanhã.



(Mas que a biografia do Manoel não vai passar no Jornal da Globo, todos sabemos)

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

O cofre e a churrasqueira

Dia seguinte madruguei. Primeiro dia de trabalho. No caminho fiz amizade com a dona moça Sofia, que foi me falando os nome dos bicho grande que a gente passava por debaixo. No maior deles, ela falô bem meiguinha, apontando o dedo gordo pro monstro: “Esse aqui é o viaduto Ayrton Senna”. “Eita porra”, pensei. Acho que eles faiz daquele tamanho pra nóis oiá pra cima e não botá reparo em quem mora debaixo. “Seu Ayrto num deve de tá feliz com isso não”.
Dispois ela me mostrô umas igreja bunita que só. Aqui é catedral que fala, né Zé? E, de repente, uma porrada desses tal de ministério foi aparecendo tudo infilerado. Deixou o memoriar JK pra trais. Fiquei abestado de ver tanta construção à toa, mas o que me intrigô mesm foi os ministério da educação, do trabalho e da justiça. “Mas e os rapaiz do seu Ayrto?”. Achei mió ficá queto.
Chegando perto das torre com as bacia virada, esqueci que me fartava um dente e arreganhei a boca. Só tinha visto em foto. Dona moça desceu. Achei engraçado que não tinha fila pa entrá na câmara não. Aliás, Zé, num tinha ninguém lá, só os guardinha pa guardá sei lá o que. Tudo o dinheiro tava bem longe dali já, né?
Foi quando entrei na ponte JK que me dei conta que meu ponto tinha passado uns 15 minuto. Disisperei, Zé. Mas aquele trem era tão bonito que perdi o ponto traveiz. Fui parar notra asa. Perdi o emprego. Na vorta tinha um tar de “Museu Vivo da Memória Candanga”, acho que é isso. Achei que era calango, mas era isso mesm. “Eita porra... museu vivo?”. Otro dia eu entro aí, se num tivé que pagá tamém. Quer dizer... deixa pra lá, vai.
No acostamento da rodovia – que agora nóis já sabe que é corpo de avião – tinha um caminhão vendendo cofre. Desci no ponto mais perto. O vendedor me garantiu que era cofre do bão, que tinha muita saída. Disconfiei, o trem tava cheio de cofre, uai! Do lado do caminhão tinha umas churrasqueira tamém. “Por que cofre e churrasqueira, seu moço?” Pra que tinha muito dinheiro pa guardá no cofre já levava a churrasqueira pa comemorá, né? Mas ele discunversô. Perguntei se num pudia trabaiá eu mais ele ali, qualqué mixaria tava bão. “Se tu comprar uma mercadoria minha, tá feito”. Não entendi o negócio, mas aceitei. Vida de vendedô deve de ser mió que de pedrero, né?
Só que daí complicou, Zé. Na pensão num pudia armá churrasco não. Daí eu comprei o cofre. O patrão mandô entregar. Parcelei em 24x discontano do meu salário mínimo. Agora tô oiano presse trem aqui no meu quartim apertado. Mas me ajuda, Zé... será que se eu jogá uma lenha e ponhá fogo dendesse bicho dá pra assá uma pizza?

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A filha-da-puta da dona Dinorath

Desde que cheguei nesse hotelzinho de meia pataca que eu digo bom dia pra dona Dinorath e ela nem tchum pra mim. Balança a cabeça – sem esboçar nenhuma expressão – só pra confirmar que me ouviu mas que não faz a mínima questão de que meu dia seja bom, afinal, o dela é sempre uma merda mesmo, né?
Outro dia resolvi pegar essa infeliz. Desci as escadas mancando e passei pela recepção sem dizer uma palavra. Quando voltei do café ela perguntou se estava tudo bem. Fiz uma cara meio chupada de limão e respondi: “Indo”.
Na manhã seguinte ela quis saber do meu pé. Lembrei da encenação e dei uma pisadinha em falso. Ela deixou escapar um sorrisinho de canto de boca. Eu disse que ainda estava doendo, mas logo melhorava. Dali em diante, ela passou a me cumprimentar, sem muito entusiasmo, mas já era um começo.
Quanto mais eu reclamava, mais satisfeita com a sua vidinha de bosta ela parecia. Foi então que meu pé resolveu doer mesmo. Ficou parecendo um sapo-boi. Entrei no hotel mancando – de verdade –, com a sacolinha da farmácia na mão. “Piorou, né?”. Sorri bem largo. Ela levantou uma sobrancelha meio que não entendendo porquê alguém com o pé todo fodido poderia sorrir assim.
Em uma semana meu pé já estava bom. Cansei de encenar praquela filha-da-puta. Saí do carro cantando e balançando o corpo. Apoiei os cotovelos no balcão. “E aí, dona Dinorath, que dia lindo foi hoje, hein?” e saí. Subi as escadas cantarolando. Ela me acompanhou com os olhos e nunca mais me cumprimentou

sábado, 16 de janeiro de 2010

Bilheteria

De dentro da cabine ela não via nada, nada além de uma restrita paisagem. X-burguer + suco = R$6,90; até parecia novidade. Já se acostumou com o sorvete verde da direita. As luzes coloridas já não têm mais graça, mas ela gosta de ficar olhando. Em pisos diferentes, na mesma direção, há duas lojas de operadoras diferentes de celular; ela acha graça. Cem reais na mão; ela acha pouco. Cinquenta reais o sapato; ela acha muito.
Todos os dias são: o mesmo pilar, a mesma lixeira e a mesma promoção. Algumas orelhas grandes, alguns olhos azuis e alguns narizes tortos. Bocas vestem inúmeras cores de batom e peles escondem diferentes frustrações: os olhos deixam escapar tudo pra ela.
De tanto ver as mesmas coisas, aprendeu a rir das gravatas apertadas, das bermudas floridas, dos vestidos de gala. Hoje o sorvete parece um chapéu verde, ontem era um balão. A escada rola pra cima, as pessoas rolam pra baixo; pinga sorvete no tapete. O nenê suga o peito desesperadamente com os olhos mamando as luzes que giram para todos os lados.
A boca dói de tanto sorrir pros olhinhos das crianças, e se desfaz num bico quando o pai se recusa a comprar o bilhete e, ao invés de chorar, o bichinho dá a mão ao protetor e lança um olhar de piedade mortífero. Escondida, ela passa o menino da rua no brinquedo sem pagar e a boca volta a doer.
No final do dia, despede-se dos pilares, da lixeira e das promoções. Pensa que todas as mães são iguais e que todo sorvete é verde. Fecha a cabine o mais rápido que pode, como se tudo aquilo fosse embora quando a chave virasse.
Dia seguinte, para a sua surpresa, liga tudo bem rapidinho. Ansiosa para arrancar um quase sorriso da gengivite mais sisuda, dá oi para a almofada verde da direita e abre o sorriso mais sincero que as articulações do rosto possam suportar; só porque, de dentro da cabine, ela via tudo.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Pulando a cerca

Começamos o dia mal, Goretti. Plenas nove horas da madrugada, segundo sono e o celular me toca. Número desconhecido; modo silencioso ativado. Isso é um disparate, sabia Goretti? Um absurdo mesmo!No horário normal do meu relógio biológico, levanto. Mal comecei a existir para aquela terça-feira e o calor já incendiou meu humor – que já não estava grande coisa, diga-se de passagem. No dia anterior tentamos entrar na piscina da faculdade. Dia de limpeza. “Não abre de segunda, querida”. “Mas, moooooço, eu sonhei com essa piscina. Isso é um pecado!”. Infelizmente ele não podia fazer nada. Claro que se pudesse não faria. Imagina! Eu tendo que trabalhar, suando em bicas, e esses universitários vagabundos usufruindo da piscina em plena segunda-feira? Não, são regras antigas, menina.
Mas não existem regras para terça-feira, certo? Errado. Existe uma regrinha infeliz (que quase ninguém conhece) para pegar a chave e abrir o portão da piscina: precisa da carteirinha. Precisa, ainda, de exame médico em dia. E precisa, principalmente, de muito bom humor da recepcionista mal-comida para dar a chave a uma dupla de estudantes inocentes e sem carteirinha. Bia e Alê, eu sei, vocês tentaram.
Quase sempre a gente chega por lá e já tá tudo aberto. E foda-se quem pegou a chave. Só que estamos em férias, Goretti. Do carro eu já vi que não tinha nenhum filho da puta na piscina e, evocando meus contatos, mandei rapidinho uma mensagem para a Bia (que foi para o pai dela com os dizeres “Não tem nenhum filho da puta nessa piscina. Morri”). Dois minutos depois a encontrei acompanhada da Alê. Desesperadamente suadas, fomos atrás do Arthur. Ele é tão cheio de contatos, tem que conhecer alguma alma bondosa que tenha a porra da carteirinha. Não, ninguém. Mas, não desanimemos... we can (na verdade, we não can, we need muito!).
Era questão de vida ou morte. Aquele coito já tinha sido interrompido uma vez. A piscina estava limpinha, lembra que segunda é dia de limpeza, Goretti? Pois é. Nos reunimos tensamente sob o calor de Rio Preto. Enquanto os três rodeavam a piscina, eu botava o biquíni – cena sexy no banheiro masculino (o feminino era muito longe). Quando saí, eles já tinha encontrado uma mesinha perto da cerca. Um olhar foi o suficiente: vamos pular! Primeiro ele, depois as duas mais ágeis e eu, claro, por último (seguindo a sequência dos escolhidos no time de voley do colégio). Todo mundo dentro, agora é só fingir que entrou pelo outro lado e usufruir do nosso direito (?) de estudantes afoitos por um mergulhinho inocente na piscina.
Sem fazer muito barulho (tentando, eu quis dizer – o barulho me persegue) e com muita maestria, pulei. Foi pra-ti-ca-men-te um gozo, Goretti. Que sensação maravilhosa! Agora sim o meu dia está bom. O problema são as pessoas que vão nos ver aqui dentro e pensar que o portão tá aberto. Foda-se, que pulem também, oras! E não é que pularam mesmo? Mais quatro pessoas se achegaram. Só faltava alguém morrer e nós botarmos Rio Preto na chamada do JN, como disse a Alê. Eu até fiquei esperando que algo mais excitante acontecesse pra poder escrever. Queria ter sido pêga pela recepcionista e entrar para os anais da faculdade como universitária baderneira. Já pensou o glamour, Goretti? Ia ser demais. Mas nada disso aconteceu. Ninguém morreu, ninguém foi expulso da faculdade, ninguém entrou pra anal nenhum (eu espero). Mas, e agora? Como vamos sair daqui? A mesinha fica do outro lado. Fodeu? Que nada! Escalamos a grade da quadra e saímos bem bonitinhos. Outros nem tanto (como eu). Ainda esperei até o último instante pra sermos pegos – literalmente – no pulo. Mas, nada.
O que me restou foi pegar a toalha sequinha que eu tinha esquecido no carro antes de cometer o pequeno delito em grupo e botar na cabeça. Fazer sucesso no trânsito também faz parte do meu show, porque não? Principalmente se for uma toalha de oncinha. Cheguei em casa refrescada, com marquinha de biquíni, e chamando muito a atenção dos funileiros vizinhos daqui de casa. Foi então que eu lembrei da ligação de manhã que eu não atendi e resolvi retornar. “Droga Farma, boa tarde”. Hein? “Droga Farma”. Quem me ligou? “DROGA FARMA, BOA TARDE”. Desisto. Me ligam desse telefone e eu sou obrigada a ser maltratada ainda? “Vou verificar” ... “Você também mora no Eldorado?” Eu sei que eu moro mal, queridinho, mas não, não moro no Eldorado (e, curiosamente, não estava precisando de nenhum remédio). “Ah, então a gente não vai estar sabendo quem pode ter estado te ligando”. Tá bom, obrigada e desculpa (chegou a hora de ser educada).
Meu dia podia muito bem ter terminado com um admirador secreto na outra linha, com um B.O. da polícia pelo delito cometido ou com uma manchete no Diário da Região. Mas, sabe Goretti, mesmo sem admirador e sem holofotes, meu dia foi muito feliz. Amanhã? Ah, Goretti... para de ser chata! Deixa o amanhã pra mais tarde, sua rabugenta!