Ventava. No meio da cidade, no
centro, no oco, no coração cinzento da massa de concreto, morava um cinema. Sala
única, duas sessões, três opções de filme. Fomos assistir a “Amour”, na
esperança romântica de que entenderíamos o filme. Era francês. Era bonito. A máquina
de pipoca estava quebrada e eu paguei entrada inteira, podendo ter simplesmente
mentido – ninguém conferia os documentos. Enquanto o filme não começava,
aproveitávamos para observar a estranheza charmosa das pessoas que se
acomodavam nas poltronas. Estar distante uma das outras era uma tradição, uma
lei, quase um ritual.
Sonhando com o momento em que as
cenas desconexas daquele longa-metragem começassem a fazer sentido, minhas
pernas mantinham-se inquietas. Cruzava para um lado e para o outro. Finalmente,
na sessão doméstica de fisioterapia, entendi uma sequência em francês: “une,
deux, trois, quatre, cinq, six, sept, huit, neuf, dix”. “Vamos até quinze”,
disse ele. E lá se foi de novo a minha concentração. Désolée. Eu estava
désolée. No entanto, para felicidade minha e desespero do meu tédio enrugado,
minhas suspeitas se confirmaram: no meio da tela escura, quase negra, piscou
uma luz. Um pontinho tão pequeno e leve que eu poderia pegá-lo com a ponta dos
indicadores. Talvez fosse um led, colocado ali propositalmente para me
distrair. Talvez estivessem testando o poder de observação de todos ali naquela
sala. Mas, aparentemente, só eu percebi o movimento sutil daquele pontinho
iluminado. Era um pisca-pisca solitário, perdido, quase desesperado. Provavelmente
o filme também não o agradava. Nem o francês. Nem o “amour”.
Te cutuquei.
- Você viu?
- O quê?
- Ali!
Era um vagabundo. Ou vagabunda. O
certo é que vagava naquela sala antiga, piscando a bunda para nós. Uma vez,
quando era pequena, comi um vaga-lume. Era fim de tarde, começo de noite, aquela
hora do dia que não se sabe definir bem o que se é. Os meninos jogavam futebol
no campo, não eram muitos. As meninas comiam brigadeiro na rede. Talvez falassem
dos meninos. Eu comia vaga-lumes. Na verdade, eu só os caçava pelo prazer de
vê-los piscando dentro do pote de azeitona sem rótulo. Acendendo aquela bundinha
luminosa para mim. Refletindo a luz sem-vergonha nos meus olhos
desavergonhados. E eu comi assim, sem dó. Sem medo. Sem arrependimento. A gosminha
explodiu na ponta da minha língua e eu corri para o espelho do banheiro da
fazenda, acreditando piamente que tinha me transformado em uma fada, um elfo ou
em um vaga-lume também. No fundo, eu esperava mesmo é poder cuspir luz em todo
mundo! Quando voltei para a varanda, emburrada, soltei os vaga-lumes e me juntei
às meninas. Ali, na luz forte do corredor de fora, vaga-lume nenhum pisca. Vaga-lume
só tem graça quando pisca no breu. E hoje fora assim. Enquanto a natureza
uivava no coração de pedra da minha cidade, um vaga-lume piscava na sala do
cinema quase mudo. Quase sem cor. Quase sem quase. Voava de um lado para o
outro, sem achar saída. Sem fazer sentido. Sem entender o amor contracenado
naquelas cenas doloridas de um casal sem fim. Saí do filme sem reação, sem
comentários, sem expressões. E o que me chocava não era o choque, nem a
tristeza, nem o vaga-lume, nem o amor. O que me chocava não era o amor. Talvez eu
fosse menina demais pra entender; pequena demais pra entender que comer um
vaga-lume não ia me iluminar se eu não pudesse ser iluminada.
Uma vez, quando era pequena, comi
um amor.