segunda-feira, 28 de maio de 2012

Quando uma criança faz falta


Parada em frente à fruteira, a mosca observava tudo sob seu oitavo olhar. As frutas eram de cera, meio desbotadas, meio descascadas; quase pareciam verdade. As paredes começavam num branco-neve e num branco-neve terminavam. Os objetos não criavam pernas, nem dançavam, nem quebravam asas, nem sorriam: eram o que eram. O tapete ficava no centro da sala: sem segredos, no meiozinho milimétrico daquele lugar quadrado e branco. As cortinas, limpinhas, faziam companhia às janelas sem tela de proteção, que contavam aos outros objetos da casa uma ou outra novidade que viam passar correndo pela rua. Enquanto isso, a mosquoila passeava pelos cômodos à procura de algo que diferisse aquele lugar de tantos outros já visitados. Mas ela, que tanto já havia sentado na merda, entediava-se com tanta limpeza, capricho e esmero. Tanto branco. Tanto cheiro de novo. Tanto silêncio. E era sempre assim quando não era casa de criança. Casa de gente grande é toda cheia de não me toques. Falta colorido. Falta peça de brinquedo no meio da sala pra gente pisar em cima. Falta aquele vômito inesperado depois da overdose de bala. Faltam dedos na parede, e nos espelhos, e na geladeira. Faltam os filhotes de cachorro dependurados nas tetas da cadela que ainda tem útero. Falta gargalhada por nada e choro por tudo; mas daquelas gargalhadas mais fúteis e daqueles choros mais profundos. Falta joelho ralado, canela estourada e pé torcido. Faltam três ou quatro pontinhos no supercílio ou então do lado direito da testa.
Falta um dente.
Faltam dois.
E a mosca pensava assim, que se falta uma criança, falta tanto! E ela, que só moscava, ficou chateada de não encontrar nenhuma caca de nariz grudada embaixo da mesa, sequer uma camisetinha suja de chocolate derretido, nenhum dedo embarreado furando bolo de aniversário e nada de restos de comida caídos no chão depois de uma refeição turbulenta à espera da hora de brincar! Foi embora, a mosca. E foi dizer às outras como é chato uma casa sem criança. E que quando a gente grande tá muito limpinha, é porque falta uma pra sujar de sorrisos a casa da gente.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Não é nada pessoal, mas...



O celular esgoelava: são seis horas, são seis horas! E por algum motivo ainda desconhecido, não me recusei a sair da cama. Vontade faltava, sim – muita. Pairava no quarto uma sensação de fracasso, desestímulo, frustração que poderiam estar por vir. “Eu não preciso passar por isso” – repetia insistentemente a mim mesma. Com o corpo todo resmungando a falta das carícias do edredon na pele quentinha, arrastei-me até o café-com-pão-café-com-pão-café-com-pão. E assim começava uma segunda-feira que tinha tudo pra dar errado. E uma voz cansada implorava que o ponteiro saísse das seis da manhã e pulasse para as seis da tarde. Mas, ali, sentada atrás da mesa do café, esfregando os olhos inchados, foi a última vez em que olhei para o relógio naquele dia.
Não houve muito tempo para o mau humor. Eu sei, detesto admitir, mas às vezes essa minha mania chata de acreditar que o universo conspira em favor da energia dos nossos pensamentos acaba funcionando de vez em quando. Na verdade, funciona sempre, mas eu prefiro fazer de conta que não acredito toda vez.
O fato é que cinco séries colegiais nos esperavam. Desprendidos, desinteressados, desalmados e sem amor. Monstros com sete, oito cabeças e muitas línguas que falariam e falariam e riam e iam e iam! E é bem assim: quando sabemos que a vitória é impossível, nem gastamos nosso tempo nos armando. Foi isso, eu me desarmei. Abri os braços, dei um passo a frente e, ao abrir os olhos, vi as feras fugindo pelos vãos das janelas. De repente meus monstros sumiram, viraram poeira... pó. E eu, vagarosamente, fui varrendo essa sujeira pra fora da sala – ficou lá no corredor. Fomos escutadas, fomos ouvidas, fomos prestadas atenção. Fomos perdendo o medo e ganhando voz. E ganhando ouvidos. E ganhando olhos. E ganhando os sentidos que nos faltavam para enxergar além de pré-adolescentes famintos pelas nossas vísceras! Eles? Eles só queriam atenção. Queriam ser também ouvidos e ter a chance de participar. Eles queriam alguém maior para lhes questionar, mas que fosse do seu tamanho para lhes compreender. Queriam – e querem – alguém que se lembre já ter passado por isso e ainda sinta a dormência na bunda das carteiras duras. E que ignore os padrões. E que ignore as regras. E que ignore os palavrões. E que ignore a não-naturalidade dos tabus do mundo, mas que não os ignore.
Quando me dei conta – se é que já tenha me dado – estava despida. Regia um grupo de mentes pensantes e “queredoras” de mudança e de ação. E, saindo dali, surpreendentemente ovacionada por essas mãozinhas carentes de discussões que os levassem a pensar na própria realidade, tropecei em dois ou três monstros que me esperavam no corredor. Eles queriam entrar de novo em sua morada. Eles queriam fazer parte do meu mundo. Eles queriam que eu não quisesse todo aquele desafio claramente fadado ao fracasso! Mas, às vezes, o que é “claro” demais nos cega; por isso, fechei a porta. E fechada em mim, desmontei – des-mo-ro-nei. Levantei a cabeça: um reflexo irônico ecoou pelas paredes: “Sabe, não é nada pessoal, mas esse seu preconceito é ridículo!”
E eu ri. Eu chorei. Explodi em sensações incomensuráveis. Me inexpliquei. Parecia que eu tinha engolido um pisca-pisca inteiro. Eu brilhava por dentro. Eu sorria, iluminava, espirrava sentido para cada palavra emitida. Eu enxerguei, enfim, razões pelas quais buscava há tantos anos. Eu acendia e apagava e acendia e apagava e: BOOM!
Eu, eu, eu, eu, eu – no meio de tanto lixo, tanta loucura, tanta mentira, tanto escarro, tanta desvantagem, tanto desamor e tantos monstros – eu descobri que precisava, sim, passar por isso. E que eu só precisava de um pouco mais de arte pra olhar ao meu redor e fazer da minha voz, o figurino; das minhas mãos, o texto; dos meus alunos, a plateia; do meu corpo, a expressão; e da minha profissão, o meu palco.
Enquanto as paredes da minha sala fechada suavam palavras eufóricas, meus olhos no espelho – sorridentes – articulavam vagarosamente o que tanto temi ouvir:
“Bem-vinda à licenciatura”