Ainda parecia manhã e voava,
rodeando a pitangueira, um pardalzinho simpático. Anunciava a beleza do seu
canto como quem dizia “Vê só? Não preciso de mais”. Eu estava aborboletada num
canto da tarde, respirando a brisa de mais uma data que se partia. Partia-se.
Partia-me. E o pardal, sem censura, arrancou-me um fio de cabelo em uma bicada
estridente. “Puta que pariu!” – e o bichinho arregalou os olhos como só havia
visto em desenhos animados. Assustado mas não bobo, sabia bem que me havia
roubado um pertence precioso. Precioso, sim, porque tenho essas manias de
acumular riquezas... como os cabelos. De tudo o que gostava, queria ter em
grande quantidade. Cabelos, dinheiro, sementes de morango. E aqueles olhos
esbugalhados mudavam a expressão como um pedido irrecusável de mais um fio. “É
pro meu ninho e... ah, você tem tantos!”. Passei a mão pelos cabelos como
quando fazemos depois de lavá-los, e os três fios que caíram lhes ofereci.
Semvergonhosamente, pousou na minha mão e disse com os olhos: “O que quer ser
quando crescer?”. E, de repente, um passarinho rebuliçou-me a alma. Não era simplesmente
“o que vai” mas sim, “o que quer”. Na inocência de não saber que
tudo o que eu queria estava ali dentro de mim, enquadrado no vento, nas penas,
nos fios e no ninho da pitangueira, comecei a buscar na memória meus desejos
mais cruéis. Porque eu sou assim, além de acumular as riquezas, gosto de
crueldades. De venenos. Dissabores. Fui parar com os pés embaixo de uma onda
quebrada, em cima de uma areia molhada. A onda que não precisa ser doce pra ser
desejada. A onda que a gente quer pular e, ao mesmo tempo, mergulhar. A onda
que faz cócegas em nossos corpos, que é suave e devastadora, que é bonita e tem
som de paz; que é grande e metralhadora. Sozinha, sem nossa permissão, ela não
se repete. Ela vem. Ela vai. Ela não espera pra bater a foto tampouco nos ilude
ficando um pouquinho mais. Salgada, é doce. Existe mas não persiste. Volta... e
nunca é a mesma. E ninguém, absolutamente ninguém pode guardá-la em qualquer
lugar que não seja a memória.
Me sobravam uns três fios na
cabeça quando olhei pro passarinho e disse: quando eu crescer, quero ser uma
onda.