sábado, 31 de dezembro de 2011

Dos detalhes inguardáveis


Ainda parecia manhã e voava, rodeando a pitangueira, um pardalzinho simpático. Anunciava a beleza do seu canto como quem dizia “Vê só? Não preciso de mais”. Eu estava aborboletada num canto da tarde, respirando a brisa de mais uma data que se partia. Partia-se. Partia-me. E o pardal, sem censura, arrancou-me um fio de cabelo em uma bicada estridente. “Puta que pariu!” – e o bichinho arregalou os olhos como só havia visto em desenhos animados. Assustado mas não bobo, sabia bem que me havia roubado um pertence precioso. Precioso, sim, porque tenho essas manias de acumular riquezas... como os cabelos. De tudo o que gostava, queria ter em grande quantidade. Cabelos, dinheiro, sementes de morango. E aqueles olhos esbugalhados mudavam a expressão como um pedido irrecusável de mais um fio. “É pro meu ninho e... ah, você tem tantos!”. Passei a mão pelos cabelos como quando fazemos depois de lavá-los, e os três fios que caíram lhes ofereci. Semvergonhosamente, pousou na minha mão e disse com os olhos: “O que quer ser quando crescer?”. E, de repente, um passarinho rebuliçou-me a alma. Não era simplesmente “o que vai” mas sim, “o que quer”. Na inocência de não saber que tudo o que eu queria estava ali dentro de mim, enquadrado no vento, nas penas, nos fios e no ninho da pitangueira, comecei a buscar na memória meus desejos mais cruéis. Porque eu sou assim, além de acumular as riquezas, gosto de crueldades. De venenos. Dissabores. Fui parar com os pés embaixo de uma onda quebrada, em cima de uma areia molhada. A onda que não precisa ser doce pra ser desejada. A onda que a gente quer pular e, ao mesmo tempo, mergulhar. A onda que faz cócegas em nossos corpos, que é suave e devastadora, que é bonita e tem som de paz; que é grande e metralhadora. Sozinha, sem nossa permissão, ela não se repete. Ela vem. Ela vai. Ela não espera pra bater a foto tampouco nos ilude ficando um pouquinho mais. Salgada, é doce. Existe mas não persiste. Volta... e nunca é a mesma. E ninguém, absolutamente ninguém pode guardá-la em qualquer lugar que não seja a memória.
Me sobravam uns três fios na cabeça quando olhei pro passarinho e disse: quando eu crescer, quero ser uma onda.


quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Inesquecivelmente


Que dia é hoje?

E, meio atordoada da bebedeira da noite anterior, cruzo os olhos com o Gabriel. Ou Rafael. Ou Emanuel. Enfim, prefiro chamá-lo de “Éu”. Ele me olhava. E pouco me interessa descrever como o fazia, ele simplesmente me olhava: bêbada, borrada e pelada. Levantei a sobrancelha direita junto com o queixo como quem diz “Qual é?” e, enquanto me vestia, ele sussurrou um “você... ah, você é inesquecível”. Por dentro, eu ri. Ele, coitado... ele queria eternizar o momento. Fiquei séria. Sabe aqueles instantes em que a gente fica na dúvida, depois, se falou mesmo ou só pensou que tivesse falado? Eu duvidei. Inesquecível? Quem quer ser inesquecível? Qualquer um é inesquecível! Não me interessa ser inesquecível. Inesquecível! Inesquecível... Lembro-me da minha primeira transa como se fosse agora: uma bosta. Inesquecivelmente uma bosta. Bem como do primeiro cara por quem me apaixonei, e do primeiro beijo, e do primeiro fora. Inesquecíveis. O primeiro quilo a mais, a primeira serenata telefônica, o primeiro vidro de perfume estilhaçado no quarto da casa de aluguel. Eu me lembro do primeiro “proibida pra mim, no way” e do terceiro ou quarto “eu gosto de você, mas não me procura mais, ok?”. O último sonho erótico, o último acorde enroscado nos dedos, a última língua... e a penúltima também. Eu lembro todos os caminhos de todos os corpos e todas as sensações. Lembro de todas as pessoas. Inesquecivelmente, lembro. Ser inesquecível, querido “Éu”, não me convém. Ninguém, em sã consciência, se esforça pra ser isso. Ninguém o é por mérito. Ninguém o é por prazer. Simplesmente é. Sem querer, sem pedir, sem lutar. É eternizado e nem sabe por quem, nem porquê, nem por onde. Inesquecibilidade é interessante, mas, nem de longe o suficiente.

Quando o Éu resolveu levantar e me esbofetear, acreditei que ele tinha finalmente entendido. Deitei as pálpebras uma sobre as outras e quando as reabri, meio segundo depois, me vi sozinha na cama, com o travesseiro entre as pernas, vestindo um pijama de ursinhos amarelo. Estalei o pescoço, passeei os dedos pelo meu corpo e disse pro Éu: é, talvez eu seja realmente inesquecível...