Emílio, ele se chama. E ele existe. Diz ter duas mães. Oito anos, ou sete, ou nove. Mora com o avô. Não toma banho. Tem olhos cor de mel, cabelo castanho claro, piolho e um buraco pra dois dentes que abrigava três: “A dentista que tirou, prô”. Diferentemente das outras crianças, ele não pede beijo, nem abraço, nem carinho; mas sorri pra qualquer um, a qualquer hora e, principalmente, durante a bronca. Quase não o vejo chorar. Precisa sempre de alguém pra mandá-lo lavar a boca depois do almoço. É raro dormir durante a tarde, mas quando o faz, custa a acordar. Baba. Cambaleia. Sonha com os aviõezinhos da boca. Ou não. “Tava sonhando, Emílio?” “É, prô... sonhei que eu tavo furano a oreia”. E a gente cai na risada.
Dia desses, reparei no pé do Emílio. Não é pé de criança, pensei. Tem um formato e uma cor e uma dor que só pé de gente grande tem. As unhas guardam a falta de qualquer coisa que se entenda por família. Uma ausência de cuidado entre um dedo e outro. A conformação estampada, enfim, no dedão. Disse, uma vez, que se ele não fosse embora, ia eu. Ele não foi eu. Eu também não. Esse pé de moleque, que chama o avô de pai, se recusa a permanecer no chão. Emílio – esse Emílio – pula, tropeça, machuca, pragueja, irrita, maltrata, xinga, abusa do corpo, da alma e da paciência. Acontece que esse pezinho sujo nunca me pisou. Esse nariz catarrento nunca me respirou. Essas mãos ordinárias nunca me estapearam. Essa cabeça piolhenta nunca me piolhou. Acontece, também, que eu não faço ideia de que seu pé mulambento não sabe pisar num lar. Que o seu nariz escorre-todo-dia espirra pó-que-não-é-poeira. Que sua vergonha já não é vergonha pra mais ninguém. Que não existe ‘mães’ nenhuma. E que não importa quantos sermões ouça, ele não vai mudar. Esses pés cascudos nasceram pra trilhar caminho que gente como eu não tem cu pra compreender. E, talvez, seja tal parte do corpo a única que ainda resguarde algum vestígio de ingenuidade e, por isso, ande pra qualquer destino, por qualquer caminho, preocupando-se, somente, em manter-se longe do chão sujo de realidade branca de poeira-que-não-é-pó.