domingo, 22 de agosto de 2010

Pé-de-moleque

Emílio, ele se chama. E ele existe. Diz ter duas mães. Oito anos, ou sete, ou nove. Mora com o avô. Não toma banho. Tem olhos cor de mel, cabelo castanho claro, piolho e um buraco pra dois dentes que abrigava três: “A dentista que tirou, prô”. Diferentemente das outras crianças, ele não pede beijo, nem abraço, nem carinho; mas sorri pra qualquer um, a qualquer hora e, principalmente, durante a bronca. Quase não o vejo chorar. Precisa sempre de alguém pra mandá-lo lavar a boca depois do almoço. É raro dormir durante a tarde, mas quando o faz, custa a acordar. Baba. Cambaleia. Sonha com os aviõezinhos da boca. Ou não. “Tava sonhando, Emílio?” “É, prô... sonhei que eu tavo furano a oreia”. E a gente cai na risada.

Dia desses, reparei no pé do Emílio. Não é pé de criança, pensei. Tem um formato e uma cor e uma dor que só pé de gente grande tem. As unhas guardam a falta de qualquer coisa que se entenda por família. Uma ausência de cuidado entre um dedo e outro. A conformação estampada, enfim, no dedão. Disse, uma vez, que se ele não fosse embora, ia eu. Ele não foi eu. Eu também não. Esse pé de moleque, que chama o avô de pai, se recusa a permanecer no chão. Emílio – esse Emílio – pula, tropeça, machuca, pragueja, irrita, maltrata, xinga, abusa do corpo, da alma e da paciência. Acontece que esse pezinho sujo nunca me pisou. Esse nariz catarrento nunca me respirou. Essas mãos ordinárias nunca me estapearam. Essa cabeça piolhenta nunca me piolhou. Acontece, também, que eu não faço ideia de que seu pé mulambento não sabe pisar num lar. Que o seu nariz escorre-todo-dia espirra pó-que-não-é-poeira. Que sua vergonha já não é vergonha pra mais ninguém. Que não existe ‘mães’ nenhuma. E que não importa quantos sermões ouça, ele não vai mudar. Esses pés cascudos nasceram pra trilhar caminho que gente como eu não tem cu pra compreender. E, talvez, seja tal parte do corpo a única que ainda resguarde algum vestígio de ingenuidade e, por isso, ande pra qualquer destino, por qualquer caminho, preocupando-se, somente, em manter-se longe do chão sujo de realidade branca de poeira-que-não-é-pó.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Sou feita de madeira, matéria morta

A porta estava trancada e ela só queria usar o telefone. Então, ela quebrou a porta. Arrombou. Despedaçou o batente. E foi só. Se ela queria a atenção do mundo, problema seu. Se precisava abrir a porta da vontade de arrebentá-la; de arrebentar-se; de arrebentar-te... e daí? O que importa é que o batente caiu. A porta abriu. Os moradores chegaram. Brigaram. Choraram. Eu vou pagar! Elas choravam. Eram lágrimas e farpas e palavras e vazios pisoteados no chão. Pode me xingar, assim fica melhor. A vítima sou eu. Eu sou o centro agora... e agora. E agora, o que vai fazer, ahn? Eu já te fiz chorar. Eu já abri o mundo; eu já extravasei. E eu nem precisei usar o telefone.


E ela só queria um pouquinho de mundo. Disk Mundo, boa noite. Não desligue, sua ligação é muito importante para mim.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Um desses congressos

Mudança de paradigma cultural. Segundo Fulano de Tal. Pós-modernidade. Está na minha pesquisa. Tempo. Capitalismo como única maneira possível de se organizar o mundo. Silêncio. Aporismo. Fulano de Tal. Está na minha pesquisa.

Pensamento maniqueísta. Comunismo. Segundo Sicrano de Lá. Psicanálise. Sociedade. Política. Está no meu livro. Contemporaneidade. Comparação. Patente. Vaso sanitário. Está no meu livro. Está na minha pesquisa. Segundo Sicrano de Lá. Está aqui.

Epifania. Búfalo. Esquecimento. Mascar chiclete sem amor. Está no meu livro. Está na minha pesquisa. Está aqui. Segundo Beltrano Daqui. Mulheres escritoras não se casam. Mulheres escritoras não se casam? Segundo Beltrano de Lá. Encontro com o real. Pensadores, eu citei. Aspecto do objeto, eu falei. Está na minha pesquisa. Silêncio. Tempo. Cinco minutos. Tempo? Dez anos. Tempo. Está aqui.

Problematização. Feminismo. Movimento. Mulher. Sexo. Amor. Outro viés. Intrínseco. Inerente. Eu faço esse raciocínio. Está na minha pesquisa. Segundo eu mesma. Segundo Fulano de Tal. Ler. Casar. Transar. Mulher. Está no meu livro. Mulheres escritoras não se casam? Está no meu ventre. Está aqui.

Discutir. Reduplicar. Diferenças hierárquicas entre os sexos. Concorrência. Orgasmo. Filhos. Crítica. Mulheres escritoras não se casam. Objetivo. Vida. Amor. Está no meu livro. Está aqui.

Teoria. Contexto. Interesse. A partir da década de 70. Acadêmico. Homossexuais. Sexo. Amor. Pós-modernidade de novo. Menstruação. Pretensões científicas. Física. Moral. Desmoralização. A mulher de novo? O filho. Está no meu ventre. O ódio. Está aqui. O orgasmo. Está no meu livro. O sangue. Está nos meus olhos. Mulheres escritoras não se casam.

Está na minha pesquisa.
Está no meu ventre.
Mulheres escritoras querem se casar.
Está aqui.