segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Por um breve cochilar


Foi um sopro quente na medula óssea, subindo pela coluna e estalando cada vértebra torta da minha estrutura. Me doeu. Me endireitou. Me arrepiou os pêlos da nuca. E apesar da ilusão morna que se aconchegava no meu coração, como um gato afrouxando a almofada velha para tirar um cochilo, um choramingo me sussurrava: “não é amor, não é amor”. A cada arranhada daquele bichano, um gemido abafado de prazer ecoava dentro de mim. Eu gostava da ardência daquelas unhas, amaciando meus sentimentos, amassando os meus órgãos, vomitando bolas de pêlo na boca do meu estômago. Eu gostava, simples assim – das dores, dos prazeres, das mordidas, dos espaços em branco que ficavam entre um sorriso e outro. Mas você só queria tirar um cochilo dentro de mim. Acompanhava de longe os meus movimentos com os olhos, analisando em qual parte do meu corpo seria mais oportuno roncar, e qual dos meus seios poderia levar pra casa como troféu: o direito ou o esquerdo? Sorrateiramente, escalava os meus cabelos com a ponta dos dedos e procurava descobrir, tentando não ser pego em flagrante, qual shamppoo barato eu resolvi usar pra ir te ver. Ou qual perfume morava no meu pescoço. Ou quantas vezes eu me perdi dentro de olhos tão brilhantes quanto os seus.
Mas não há, simplesmente não há nada que dure para sempre dentro de mim: nem arrepios, nem orgasmos, nem suspiros, nem angústias, nem saudades, nem almofadas amassadas. Então, como de praxe, o sono passou. Você espreguiçou sem fazer barulho, vestiu uma bermuda velha e foi subindo pela minha faringe. Escapou pelos ouvidos, pelos olhos, pela boca e pelos poros. Um vento gelado golpeou minha caixa óssea, descendo em espiral pelo meio do meu ser.
Quando dei por mim, lá estava eu: toda torta mais uma vez.
E uma voz me sussurrava como o alívio de um domingo desobrigado da segunda-feira: “não era amor, não era amor”.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

De um desejo demodê


“Café italiano, por favor” – ele nunca tinha visto alguém fazer um pedido naquele lugar com tanta gentileza. Não que não fosse a primeira vez que estivesse ali, mas, na sua cabecinha machista não era exatamente assim que deveria ser. De fato, havia muito café nas veias azuis daquela menina. E, enquanto ela sorria entediada, ele observava cada mínimo movimento dos seus músculos. Quando a atendente errava a mão do café, ela, gentilmente, depois de um curto gemido, despistava: “não foi nada, não”. E ele ali, curtindo seus passos. Quase sem entender porque continuava naquele lugar, pensou poder estar sendo observado. Disfarçou. Pegou um café – sem açúcar, por sinal. Talvez por nervosismo tenha bebido tudo num gole só. A quentura da bebida inquietante invadiu-lhe as entranhas. As estranhas. Ela teria o quê? Dezesseis, dezessete anos. Mas a aparência confusa daquela displicência angelical começou a realmente tirá-lo do sério. Já fazia horas que folheava revistas, observava quadros, beliscava petit fours e queimava a língua no café da recepção. Até aquele cheiro nojento de acetona parecia lhe apetecer em dado momento da tarde. Ficava tentando imaginar como seria aquele gemido prolongado. Como seria essa menina? Mas, por mais que seus pensamentos gritassem, ele estava a salvo pelos pêlos de sua barba. Toda compreensão era pouco para um homem naquela situação – o noivo esperando o penteado da futura esposa ficar pronto. Diriam por aí que dá azar, mas eles formavam um casal desprendido dessas “demodê-lidades”. O fato é que cada demão que a manicure passava nas unhas daquela menina branca, faziam os sentidos dele pulsarem. De onde ela veio? Pra onde ela vai? O que a faz pintar as unhas dessa cor? Será que é de esquerda? Será que é menor? Será que é virgem? Sabe fazer café? 
Enquanto isso, saía mais um expressinho da máquina da recepção. O salão estava cheio. Todos os bobs enrolados naqueles fios de cabelo desgastados por tintura ou mesmo pelo tempo cochichavam entre si – eles sabiam. As mulheres, em geral, apreciavam a presença dele. “Só um homem gentil acompanha a própria noiva no salão”. “Hmmm... bem gostosinho ele, não?”. “Ele sabe que ver a noiva antes dá azar?”. Só ela não se importava. Nem o seu coque quase caído por cima dos ombros. Nem seu cabelo sem tintura. Nem sua testa oleosa. Nem o seu piercing no lábio direito inferior. Nem sua língua que brincava com ele, vez ou outra, certamente para o aprisionar dentro de suas veias verdes – e azuis. E enquanto a moça corcunda terminava o serviço em seus desengonçados pés adolescentes, ela tentava não borrar as unhas que, entre os seios minúsculos, brincavam com uma nota de cinquenta reais. Eis, então, que ajeitou o troco no bolso da saia jeans, desajeitou o coque no topo da cabeça – sem esticar muito os fios rebeldes –, e foi saindo, arrastando as havaianas-brancas-38 pelo salão. Passou os dedos pelo balcão onde a noiva, que esperava pra ser maquiada, esbarrou os olhos nas unhas, dizendo: “que esmalte lindo! Que cor é?”. E, antes que os olhos dele explodissem no sorriso tímido e nem um pouco inocente daquela menina, ele mesmo respondeu, balbuciando às próprias veias: “café italiano, por favor”.