Com a caneca de cerâmica entre os lábios, bebia a água gelada. Botava pra dentro. Às vezes só engolia, doutras, mexia dentro da boca com as bochechas em forma de bexiga implorando “aperte-me”. Era difícil explicar pra uma caneca que sensação era aquela.
- A da água na boca?
- Não, não. Referia-me à vida.
E lia e relia o voucher. Era uma passagem perdida. O relógio marcava horas perdidas. E a caneca ali, achada entre os meus dedos. Eu a prendia assim, entre a asa e a palma da mão, com o queixo no meio dos joelhos, em cima da cama; sem pijama. Eu mordia e mordia e mordia a caneca, mas nada me tirava da cabeça essa agonia: “eu perdi o voo”. E o piloto, aquele ingrato, que deveria ter-me esperado. Ou a aeromoça, aquela vagabunda, deveria ter avisado. Ou o tempo, aquele injusto, ele é que deveria ter parado. Mas como tudo na vida já não se justifica mais aos seus trinta e poucos anos, fiquei ali: imóvel, ferida, mordida, emburrecida dentro de mim. Com todas aquelas vozes gritando a culpa que era de todos – menos minha. E eram faltas tão inúteis, e foram minutos tão sem vida e foi uma escolha tão insensata.
- Vai ver é isso aí mesmo!
- Isso o quê?
- Tem dias que a gente acorda burra!
Tem dias que a gente acorda burra. E vai dormir burra e não percebe. Veste-se burra e não se dá conta. Banha-se burra e não se sente. Toma um chá de burrice, e não vomita. É, vai ver foi isso. E a culpa é de tudo isso. Se eu comprei a passagem, se eu quis embarcar, se eu tropecei no salto e, ai, perdi o voo! É de tudo isso a culpa!
- De tudo isso o quê?
- De tudo qualquer coisa que não seja eu, oras!
Foi simples assim. Com o canino em cima do indicador direito, eu sabia que era mentira. Todas as partes do meu corpo sussurravam o meu desdém. E em toda essa simplicidade do momento, caída e recomposta por uma caneca d’água, eu descobri: não fui eu que perdi o meu voo, foi você que errou o seu.
O seu voo fui eu.