sábado, 20 de abril de 2013

Carta ao perdoado


Era uma terça-feira. Final de tarde. Naquelas conversas despretensiosas de um pôr-do-sol amargo, daqueles que pontuam o fim de um dia muito produtivo de trabalho com um suspiro desabador. Foi assim. Simples. Bobo. Quase imbecil. Te descrevendo minuciosamente para um amigo de festas da faculdade, eu te encontrei. Te descobri. Arregalei os olhos. Arregalei a boca. Arregalei o coração. Percebi, em meia dúzia de palavras, o quão absurdamente grande e forte é o sentimento que bate nesse peito murcho por você. Não que eu ainda não soubesse, viu? Vou te contar um segredo, mas naquele dia chuvoso de algum mês de 2002, minha gagueira tomava conta de todo o meu ser. Eu tremia. Soluçava. Chorava. Convulsionava. Abria a boca e as palavras não soavam. É... isso mesmo, igualzinho àqueles pesadelos nos quais a gente grita sem voz enquanto cai do precipício. Dez anos. Dez anos se passaram depois do meu primeiro “eu”, meu primeiro “te”, meu primeiro “amo”. Eu te amo. Sussurrado, amedrontado, esmagado entre os átrios direito e esquerdo. Porra, eu te amo! Gritei, enfim, mas sem “porra”, porque naquela época não era acostumada a falar palavrões. Mas, viu, nasci te amando, homem de Deus! Não escolhi. Não pedi. Cortaram meu cordão e “puff”: te amei. Acontece, meu bem, que perdão não tem nada a ver com amor. Nada, nadinha, viu? Passei por trancos e barrancos tentando te encaixar nos padrões que o mundo me encaixou. EN-CAI-XAR. Eu queria te enquadrar. Fazer de você mais um boneco engravatado e sem paixão. Quantos mares de lágrima não desperdicei? Quantas contrações no peito? Quanta dor, meu amor, quanta dor? Até perceber no fundo daquela caixa escura em que eu me escondia, um fio de luz. Saí. Fui ao seu mar navegar. Naquele mesmo mar que lagrimei. Sorri. Te vi. Sem âncoras, você também navegava. Pulei no seu barco. Te guiei; me guiei. Te encontrei; me encontrei. E foi numa conversa boba de fim de tarde, te descrevendo como meu porto seguro, confidente e melhor amigo que eu me dei conta de ter me livrado da única âncora que me impedia à felicidade plena: o não-perdão. Ô, amor da minha vida, eu te perdoei. Após dez anos de amor declarado, regado a outros dezesseis de imperdão injustificado pelas amarras do que os outros pensam de nós, perdoei. Era mais do que amor. Era perdão. Era sublime. Era PERDÃO. E eu te perdoei sem dor, sem medo, sem culpa... do fundo do meu “tica-tica-bum”. TICA-TICA-BOOM!
Era o final de uma tarde produtiva quando eu te encontrei. Te amei. Te perdoei. Meu melhor amigo, meu confidente, meu porto seguro e, com muito orgulho: meu pai.

domingo, 7 de abril de 2013

Quando a tristeza bate


(Sugestão: ler ouvindo o álbum “Ventura”, LH)


Aconteceu comigo.

- São seis e quinze.
- Sério?
- Sério.

E aconteceu. O sol espreguiçava-se por trás das nuvens. Talvez trocasse de roupa. Ia rasgando as arestas recortadas de um céu sem azul. Eu também estava cinza. Ia passando um café quando o filtro de papel rasgou no meio e entornou meu pó. Desisti. “Deixa isso pra lá”. Deixei. Meu coração fazia caretas enquanto eu sorria. E iam acontecendo umas mentirinhas entre esses lábios ressecados pelo excesso de rancor. A amargura batia na boca do meu estômago e voltava. Parecia que eu tinha comido aquela merda daquele pó puro. Eu tava fodida. Enquanto tirava a calcinha, dei play naquela animada... qual é o nome mesmo? “I feel so close to you right now”. E coisa. E tal. Também era mentira. Enrolei-me na toalha e meti logo de cara “A Outra”. Los Hermanos. É, eu tava fodida. A chuva começou e finalmente entendi: o sol tomava banho. Enquanto Camello dançava com outro par pra variar, eu sambava a dois por mim embaixo do chuveiro morno, amor. Bateu aquele preto e branco no meu olhar. Quase chorei.

- São sete horas.
- Já?
- Já.

Esfregava a bucha vegetal nos braços, nas pernas, nos seios, na cara. Enquanto eu quase chorava, um coração batucava fraco do lado de fora de mim, mas precisava disfarçar. Padecia de um vazio bobo e raso, criado à toa por mim. Carecia respirar. Antes carecia perder o ar. Prendi a respiração e nada chegava perto do que carecia. Emburreci, e ainda eram sete e dez de um dia “Black & White”.

“Caralho, mas que merda!”. E nenhum café forte pra salvar. Dei dois tapinhas na cara inchada de sono, sequei os membros de qualquer maneira e me enfiei no look mais básico do meu amontoado de roupas da semana. Enchi meus olhos de óculos de sol. Chovia. Ficou pra trás, no corredor das minhas veias atordoadas, a melodia angustiada de um cara estranho. E eu só queria um colo. Podia ir à puta que me pariu. Um cafuné. Seguido de um café bem quente pra queimar a língua e fazer arregalar os olhos; deixar-me ardendo o resto do dia pra esquecer das outras dores; perder o paladar; ter uma desculpa pra não beijar.

É que a felicidade quando bate, explode. Estilhaça a gente desde a pré-eliminar. E, depois do gozo, a gente elimina. Se não prelimina, prevalece; permanece. E vai nos fazendo padecer de outros orgasmos. Nos mesmos organismos. Naquela desorganização.
Depois do meio-dia, meus cabelos ainda estavam molhados. Os lábios ainda secos. Os ossos, em farrapos. Eu mendigava a alegria das pessoas, mas é foda sorrir de volta. Meu celular vibrou no bolso uma mensagem desconhecida:

- Já são duas horas.
- Mesmo?
- Mesmo.
- Vem me amar?
 - Hoje não.
- Mas tô com saudade.

Não ri. Deixei aquele verbo “amor” apodrecer na minha caixa de entrada. Eu não queria ser feliz assim. Não queria ser feliz. Porque se eu deixasse todo o peso daquele cinza sair das minhas costas, corria o risco até de voar. Flutuar. Zanzar pelo céu sem destino. E pra onde eu queria ir, não poderia. Nem todas as portas e braços e pernas se abriam para o meu sorriso; meu amor; minha saudade. É que a felicidade, quando bate, é atentado terrorista. E hoje eu não era mulher-bomba. Era sobrevivente de um campo de concentração chamado orgulho.

Aconteceu comigo e eu quase chorei. E enquanto eu quase chorava, desenhava com meus lábios um coração em volta do seu umbigo gostoso. É que a tristeza quando bate, arrebenta. E eu tava mesmo fodida. Arrebentada. Acidentada. Engessada. Deixando o verão pra mais tarde porque assim tá bom, com o que sobrou.

E quando te perguntarem de onde vem a calma daquela mulher, você vai correr a memória nas nossas conversas de botas batidas de quando éramos um par e responder, zeloso do nosso sofrimento bonito: “do lado de dentro”.