domingo, 31 de março de 2013

O vaga-lume

Ventava. No meio da cidade, no centro, no oco, no coração cinzento da massa de concreto, morava um cinema. Sala única, duas sessões, três opções de filme. Fomos assistir a “Amour”, na esperança romântica de que entenderíamos o filme. Era francês. Era bonito. A máquina de pipoca estava quebrada e eu paguei entrada inteira, podendo ter simplesmente mentido – ninguém conferia os documentos. Enquanto o filme não começava, aproveitávamos para observar a estranheza charmosa das pessoas que se acomodavam nas poltronas. Estar distante uma das outras era uma tradição, uma lei, quase um ritual.
Sonhando com o momento em que as cenas desconexas daquele longa-metragem começassem a fazer sentido, minhas pernas mantinham-se inquietas. Cruzava para um lado e para o outro. Finalmente, na sessão doméstica de fisioterapia, entendi uma sequência em francês: “une, deux, trois, quatre, cinq, six, sept, huit, neuf, dix”. “Vamos até quinze”, disse ele. E lá se foi de novo a minha concentração. Désolée. Eu estava désolée. No entanto, para felicidade minha e desespero do meu tédio enrugado, minhas suspeitas se confirmaram: no meio da tela escura, quase negra, piscou uma luz. Um pontinho tão pequeno e leve que eu poderia pegá-lo com a ponta dos indicadores. Talvez fosse um led, colocado ali propositalmente para me distrair. Talvez estivessem testando o poder de observação de todos ali naquela sala. Mas, aparentemente, só eu percebi o movimento sutil daquele pontinho iluminado. Era um pisca-pisca solitário, perdido, quase desesperado. Provavelmente o filme também não o agradava. Nem o francês. Nem o “amour”.

Te cutuquei.

- Você viu?
- O quê?
- Ali!

Era um vagabundo. Ou vagabunda. O certo é que vagava naquela sala antiga, piscando a bunda para nós. Uma vez, quando era pequena, comi um vaga-lume. Era fim de tarde, começo de noite, aquela hora do dia que não se sabe definir bem o que se é. Os meninos jogavam futebol no campo, não eram muitos. As meninas comiam brigadeiro na rede. Talvez falassem dos meninos. Eu comia vaga-lumes. Na verdade, eu só os caçava pelo prazer de vê-los piscando dentro do pote de azeitona sem rótulo. Acendendo aquela bundinha luminosa para mim. Refletindo a luz sem-vergonha nos meus olhos desavergonhados. E eu comi assim, sem dó. Sem medo. Sem arrependimento. A gosminha explodiu na ponta da minha língua e eu corri para o espelho do banheiro da fazenda, acreditando piamente que tinha me transformado em uma fada, um elfo ou em um vaga-lume também. No fundo, eu esperava mesmo é poder cuspir luz em todo mundo! Quando voltei para a varanda, emburrada, soltei os vaga-lumes e me juntei às meninas. Ali, na luz forte do corredor de fora, vaga-lume nenhum pisca. Vaga-lume só tem graça quando pisca no breu. E hoje fora assim. Enquanto a natureza uivava no coração de pedra da minha cidade, um vaga-lume piscava na sala do cinema quase mudo. Quase sem cor. Quase sem quase. Voava de um lado para o outro, sem achar saída. Sem fazer sentido. Sem entender o amor contracenado naquelas cenas doloridas de um casal sem fim. Saí do filme sem reação, sem comentários, sem expressões. E o que me chocava não era o choque, nem a tristeza, nem o vaga-lume, nem o amor. O que me chocava não era o amor. Talvez eu fosse menina demais pra entender; pequena demais pra entender que comer um vaga-lume não ia me iluminar se eu não pudesse ser iluminada.

Uma vez, quando era pequena, comi um amor.

domingo, 17 de março de 2013

Untitled acid


Havia algumas horas que a viagem tinha acabado, mas ela não saía de mim. As pessoas ainda conversavam eufóricas e a música ecoava dentro da minha cabeça, bombardeando ondas sonoras por toda a extensão do meu corpo, que tremia. Tremia e voltava. Respirava. Os minutos passavam na velocidade das horas e, de repente, a vontade imensa de tornar aquele momento infinito transformou-se no tesão imediato por dar fim. Dar fim a você. Dar fim a mim. Dar fim ao mundo que construímos sem tijolo nenhum, apenas desenhando com neon na luz negra os degraus das nossas vidas. O brilho das meninas dos olhos das meninas era encantador. O dos meninos era ofuscante. E eles se cruzavam com a luz do sol, que cutucava os poros da pele tão sensível ao toque. Todos podiam ver o sangue fritando nas minhas veias. Todos viam as minhas veias. Todos me viam. Meu corpo, cansado, transava incessantemente com a minha mente usurpadora, que, daquilo, queria tirar proveito de cada segundo. Cada gota. Cada acidez. Cada doçura. Se o mundo visse o que eu via, ninguém mais trabalharia. Ninguém mais perderia tempo de vida procurando razão para as irracionalidades do destino. Nos alimentaríamos de lagartas azuis que, quando borboletas virassem, rasgariam nosso estômago, sendo

livres para abrilhantar nossos olhos com as cores
que desenhariam flores
que se transformariam em amores.

Os pássaros costurariam nossos cortes e, ao invés de dor, sentiríamos prazer. As passagens estavam compradas, bastava querer. As malas estavam prontas, bastava partir. Os meus dedos esperavam os seus, bastava trançar.
Acordei no seu colo, abraçado às suas pernas como se você fosse fugir dali a qualquer momento. Seus olhos riam de mim. O calor do seu corpo congelava a minha respiração. Eu via luzes em você. Meu olfato seguia o seu cheiro como os cachorros são levados em êxtase pelo perfume de um bom pernil. Eu queria te mastigar. Te prender dentro de mim e te vomitar todas as vezes que precisasse olhar para seus olhos de novo, só pra me acalmar. Eu queria os seus cabelos dentro do meu nariz, sua língua entre meus dentes, seus olhos nos meus lábios, minha boca no seu umbigo, minhas orelhas na sua boca, seus quadris nas minhas mãos, meu colo em seus braços e a sua cintura entre as minhas pernas. Tudo ao mesmo tempo. Assim. Ao mesmo tempo e devagar, curtindo a desformidade do seu rosto sem rugas; o rosé dos seus mamilos baratos, desenhados nos seus seios que não tinham começo nem fim; e a umidade cálida da sua língua felina que caçava na minha pele as sensações que já não cabiam em mim. Eu podia adivinhar que aquilo era loucura e rezar, herege, pedindo para não terminar. Mas o que eu mais queria era o fim. Seu corpo sorriu mais uma vez. Sorri de volta. Duro, imaturo, quase sem forças pra dizer que...

não disse.
Não podia dizer.
Não queria dizer.
Não sabia dizer.

Curtimos o silêncio mentiroso, que ricocheteava espasmos no meu braço direito, enquanto procurávamos sentir a pele um do outro de todas as maneiras possíveis: peito a peito, palma a palma, pé a pé, coxa a coxa, boca a boca e até olho a olho. Sim, olho a olho, no singular. Nos olhávamos sinceramente, um de cada vez. Primeiro o direito, depois o esquerdo, depois o tesão. Nossos dedos brincavam entre si. É impressionante a força da energia dos nossos corpos em sintonia. Mesmo que eu não quisesse nunca mais te amar, nunca mais te beijar, nunca mais te abraçar pra sempre... aquela energia era o amor do nosso momento, amor de horas contadas, amor à conta-gotas, amor à nova moda. Não, eu não te amo agora, mas eu te amei ali. E você, também sem querer,

me amou de volta.
Não mais agora.
Naquela hora.

Acordei de novo. Dessa vez na minha cama. Sozinho. O relógio contando passo corretamente. O sol posto. A lua cheia. As estrelas não cantavam mais. Os pássaros não sorriam. Os olhos não se iluminavam e a música não bordava rendas francesas no ar. Um alívio ensurdecedor golpeou meu coração e, sobretudo, meu cérebro. Acabou. Desfiz as malas calmamente, separando na estante o lugar de cada lembrança trazida da viagem. Você era um souvenir de porcelana, com a ponta das duas asas lascadas pelo impacto do desajeito do bagageiro. Ficava linda ali. Desobrigado de te ver de novo e de te querer por perto mais uma vez, abri a porta de casa e segui para o guichê. Esvaziei os bolsos no balcão, deixando cair no chão uma foto amassada nossa. Guardei os clipes, os papéis de chiclete de menta e a camisinha vencida. A atendente me olhou com o desdém de quem nunca pôde sair dali para uma viagem e sussugritou:

- Destino?
- O mesmo da noite passada.
- Ida e volta?
- Só ida, por favor.

domingo, 3 de março de 2013

Pra me esquecer


A manhã daquela segunda-feira prometia um dia de céu aberto e agenda cheia. Daqueles que odeia acordar cedo, pulou da cama 15 minutos atrasado: não ouvira o despertador do celular. “Preciso trocar essa porcaria!” Tocava muito baixo, isso era fato. A tarde, no entanto, virou de ponta-cabeça seus planos encalorados de suar feito um porco, trabalhando todo torto com o notebook no colo: choveu. Uma linda nuvem cinza se aconchegou em cima do seu telhado e começou a roncar o estômago em cima dele. Trovejou. Tempestou. Sussurrou meia dúzia de saudades e desabou em água. Água limpa o que ficou pra trás. Leva a sujeira embora. Leva o passado e o presente o futuro, se deixar. E ele deixou. Soltou seu barquinho de papel na enxurrada da sarjeta e assistiu o adeus sem nenhum pesar. Se tivesse uma câmera, até filmaria. Respirou em paz, como se um corte fundo estivesse se enrasando. Vai que eu acredito? Vai que ele acredita também... e toda aquela dor sem razão de ser fosse embora da gente como um espirro assustado. Desenhou suas próximas tatuagens nas costas de um documento oficial, esboçando e borrando rabiscos bobos com o mesmo lápis 6B que guardou da lista de material escolar da sétima série. “A professora de artes era uma idiota”, lembrou. Lembrou também das telas amareladas de nanquim que desenhara em qualquer aula dessas. Dessas da professora idiota. Abriu uma cerveja trincando. Não tinha borracha para apagar os erros da sua arte sublimemente grotesca. Tomou um gole. Curtiu o espirrinho chocho do anel da latinha. Borrou a capa do seu currículo com a bunda da mesma latinha. Pareciam lágrimas, mas não eram. O amargo do líquido descia como se doce fosse. E era. Escutou uma daquelas músicas nostálgicas que dá vontade de transar. Deu. Não transou. Devorou outra cerveja e perdeu o rumo do trabalho. Voltou. Lembrou do barquinho outrora abandonado. Pensou em resgatá-lo. Teve preguiça. Voltou ao trabalho novamente. O dia estava quase acabando, quando uma coceira incontrolável na nuca o fez lembrar-se de mim. Tomou um banho morno, morno como seu amor. Enrolado na toalha, deu uma olhadinha pela janela e sentiu a humidade relativa do ar se espalhando pelo seu pulmão. Sorriu. Passou um perfume naquela mesma nuca e esqueceu de me amar. Amou-se só. E foi ser feliz. E só.