terça-feira, 20 de abril de 2010

Notas de porteiro

            Seu Zé passava as horas de trabalho a passear os olhos pela juventude do condomínio Dom Quixote. Quando velho rabugento reclamava o som alto, achava era graça. “Viver faiz baruio, seu Ernesto”, pensava o danado. Cansou de ver briga de casal, bico de moça bonita e malandragem de adolescente safado.
            Dandara já havia dispensado uns cinco rapazes naquela portaria. E o Zé ria. “Êta menina tinhosa”, pensava o danado. E de certo que tinha razão. Dandara, bonita e bicuda, fazia os moços de gato e sapato. Pintava o sete e pedia bis. Vez em quando sofria a primavera e chorava as pitangas com seu Zé. “Mas justo desse que eu gostava fui levar um pé?”. “Se acarma, Dandinha, num tinha di sê”. E lá ia a menina fazer sofrer três estações de garotos por conta de uma primavera infeliz. Seu Zé tentava sossegar a menina: “Num vê a Sufia? Vivia remungano feito ocê... agora taí di barriga e marido”. “Deus me livre, seu Zé. Sai pra lá”. “Intaum num recrama, Dandinha. Num tinha di sê!”
            Até que um dia, da esquina se via, Dandinha e um tal de amigo de estudo. De óculos engraçado, cabelo engomado, cinto na calça e cadarço num laço impecável. Subiu meio brilho – cadernos em punho – sorriso de lado. De canto. De boca. Seu Zé, danado, ria sem um dente. “Lá vai essa diaba sofrer mais um trouxa”.
            No primeiro dia foi ‘tchauzinho’ de longe; na segunda vez foi aperto de mão. Beijinho no rosto; abraço apertado; sorriso escancarado; beijo na mão. Seu Zé, desconfiado (e mais: desconjurado!), resolveu perguntar o que estava pra ser. Dandara, diaba, fez ar de mistério, mas seu Zé, danado, logo entendeu. Viu no brilho dos olhos da menina Dandinha amor puro e sincero, mais bonito que o seu. Mas foi dito e feito pra seu Zé, ordinário, pintar a carranca no bico de Danda. Soltou um gargalho e, quase Dom Quixote, pensou alto assim: “Depois de tanto sofrer primavera por moço charmoso e galante, foi logo você, minha Dandinha tinhosa, se apaixonar no verão pelo gago Tadeu?”

terça-feira, 13 de abril de 2010

Um senhor entre aspas


            Eu te amo. É bom que confesse antes que desista. Afinal de contas, a intenção é desistir. Pecamos pelo exagero; o exagero do não-exagero. Tudo é pouco para nós: os problemas, as palavras, o amor – ou a demonstração dele, justifique-se como quiser. Ah, é! Já ia me esquecendo... o “senhor” não gosta de se justificar. Está sempre certo, então... pra quê? Por que tudo isso? Tudo é muito grande, um grande exagero para o “senhor”, um enorme não-exagero para nós. E são tantos os motivos para não sentir sua falta quando não houver mais abraço, mas insisto em temer esse dia. Se é que ele vai chegar, pois talvez eu vá antes e, por Deus, o “senhor” não vai querer notar a minha ausência.
            Eis que escolhe um seleto grupo de palavras a fim de censurar meu preguiçoso amor. E sua imagem sisuda vai se petrificando dentro de mim. Para de falar; nunca vai chorar; não sabe sorrir. A verdade é que te amar me dói por tudo o que o não é e me engrandece e alimenta e acalma pelo pouco que se deixa ser. Não amo porque aceito nem aceito porque amo. E há de ser assim até o começo e o fim. Tem de ser assim.
            E de repente é simples entender porque eu não posso deixar de pedir essa benção carrancuda. Essa que me aprova com um indiferente fechar de olhos. Nem piscar... nem a piscar o “senhor” se dispõe.
É simples querer te defender do mundo em que me colocou? E que se eu não quero desistir, não é por amor ao “senhor”, mas porque, desde o princípio, fui eu que te escolhi. Foi por amor àquelas tais causas perdidas, às famílias partidas, aos lares vazios. Se eu não desisto de tirar as suas aspas é por amor a mim... e somente a nós, meu senhor.

domingo, 4 de abril de 2010

Verão-me

Fez de conta que era inverno. Forrou o fundo do copo americano com vinho barato. Soltou um tango francês de voz brasileira. Falou com o espelho em italiano. Escolheu peças de roupa desconexas e jogou na cama. Dançou com a manga comprida do moleton azul. As meias coloridas pintavam-se de marrom enquanto ela se jogava dos braços de Pitt para os de Jolie. Pensava em como suas pernas eram lindas enquanto traçava a pálpebra direita de preto. Sempre a direita primeiro. Abraçou a programação do cinema: era hoje. E as caixas ecoavam, quase como um ritual ‘Ne me quitte pas’.
Esperou o vinho evaporar da garrafa. Mordeu um morango azedo. Enfiou cinquenta reais no bolso e deixou o sol sair dali. Jogou a bolsa no banco de trás e quase não sentiu vergonha por estar sozinha. Bobagem a sua. Esqueceu que ‘era’ inverno, cruzou as pernas e deu de cara com o tornozelo esquerdo. Despido, ali, fita gasta; quase decidida a ir embora pra casa. Entrou na fila, comprou o bilhete e sorriu: ‘Ne me quitte pas é o caralho’. O funcionário do cinema segurou o riso.
E a fita continuava ali, no tornozelo esquerdo; fazendo lembrá-la de que não era inverno, que o vinho era barato, que o tango era falso e que as meias ainda eram coloridas.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

L'attimo fuggente

Toda a muleta que deveria ser usada para encantar meia dúzia de palavras, enquanto eu queimo parafusos pensando uma estratégia pra te ver sem querer mais tarde, não pode estar aqui. Nunca vai poder. E se você não pode ser mágico pra mim, nunca pode ser: nunca pode ser pra mim.