sexta-feira, 26 de março de 2010

Ginecologicamente testada

Sofia não era uma virgem qualquer. Falava de sexo com a prepotência de alguém muito experiente; enganava muitas pessoas assim. Não que isso fosse bom. Boas moças, dessas pra se casar, não devem ser como Sofia. Mas agora ela tinha um namorado. Pobre garoto. Em poucos meses, percebeu que ela não era tão doce e que o poder de o ser nas horas mais inesperadas era apaixonante. Viciante. Sensual.
Paciente, ele soube lidar tão bem com o mau-humor e o azedume da namorada virgem, que a comeu. Vitorioso, mal sabia ter ele sido um peãozinho no tabuleiro de Sofia. Não que ela fosse uma cleptomaníaca de pintos virgens, mas ela gostava do que era bom. E o seu pinto virgem não era bom pra ela.
Duas semanas depois do pé na bunda, esbarraram-se na sorveteria que costumavam frequentar. Ela, dissimulada, sentou-se na mesa do casal. Riam-se todos. Clima leve. Alma limpa. Tudo ia bem, até ele soltar uma piada-velhas-virgens inconveniente – e esse era o seu forte – ‘mas eu só queria te comer’. Elas se entreolharam. Ele engoliu seco, percebendo a cagada. Curiosamente, ela riu. ‘Mas agora posso dizer que fui ginecologicamente testada por você’. Levantou-se. Pagou o sorvete. E da entrada da sorveteria pronunciou sorrindo: ‘porque o que você chama de sexo, pra mim pareceu um teste... e péssimo, diga-se de passagem’.
Clima pesado na sorveteria – e esse era o seu forte – sim, o de Sofia.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Zé, dona Maria Emília e o pobre do governador


Deu no jornal. Na tevê não dá, purque não tem tempo, né? Tá passano jogo e BBB. Aliáis... quem ganhô? Quem saiu? Pobre guvernadô. “Fora hostilizado” pelos professor da rede estadual – esses sim, bandi baderneru! Onde já se viu, dona Maria Emília? Jogá ovo nu carro de um homi tão bom? Feiz até us amigo da escola esse fim di semana, viu não? Bsurdo! Se enfia em greve só pra armá confusão. Num leu na notícia? Até briga eles arrumaro. Não querem trabaiá, essa é a verdade. Num viu no comercial? Vida boa é a deles. Quem dera eu tê estudado pra sê professor. Num viu que eles ganha cinco mil real, dona Emília? E ainda qué fazer greve? É só estudá pra sê bão; eu vi na tevê... eles num mingana não! Bandi vagabundo!
Dona Maria Emília, professora aposentada do estado. Sem bônus, sem créditos, sem voz. Salário estagnado há mais de dez anos. Cinco mil é engraçado, mas a piada vem impressa no hollerit. Respirou fundo, ergueu a sobrancelha direita com a elegância de que há tempos não gozava e disse rouca e calmamente: Vai tomar no cu, Zé!

terça-feira, 16 de março de 2010

Eita, trem

Foi tiro e queda. Na cozinha. Dona Euci, com a touca na cabeça, catava feijão. Ângela contava as proezas do filho mais novo. E o trem fez piuí. Tiro e queda para uma mente insana e sem filhos enquadrar a cena no filme da sessão da tarde. E era ‘à tarde’. Tinha sombra de jacarandá lá fora e flor das nove horas esperando pra perfumar a gente. Barriga cheia do almoço e cheirinho de janta no ar. Pote de plástico cheio de mamão picado. Mamão docinho. Caminhão do mamão. Olha o mamão!
Esse barulho do trem dá medo na gente, tia. Atrapalha a bronca também. Mas quando começa o barulho da criançada, a gente lembra do mamão, do trilho do trem, do feijão. Sorriso da gente corre lá pro passado, pra infância, pro feijão que a mãe contava. Nem conta mais. Nem história, nem arroz e nem feijão. Daí o barulho acaba; vira música, eu sei lá. Daí um ninhozinho de piolho abraça a gente, sorri faltando um dente e diz, quase querendo ser sincero: ‘quando crescer, quero ser bunita igual você, tia’.
Sei lá... coisas de sessão da tarde.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Ser prima

Seu vestido colorido era lindo e eu poderia revivê-lo a eternidade inteira. A gente fazia o caminho da minha casa até a sua como se cada galho ou pedra fosse um grande obstáculo. E era tudo realmente grande para nós duas. Fazíamos planos eternos, cúmplices de um olhar. Você nunca me disse, mas eu sei que era assim. E eu dormi menina, numa tarde de agosto em que os caminhos eram longos, os vícios eram bobos e os vestidos coloridos. Eu não chupava o dedão e você não cutucava o umbigo. Dormimos meninas, sem nos preocupar se um dia tudo aquilo iria embora de nós.
Foi quando passei em frente daquela que um dia foi a minha casa e percebi que já não era mais. Trocaram os portões, mudaram o jardim. Eu te procurei; eu me procurei. Voltei pelo caminho da sua casa, que virou um quarteirão. E os galhos eram galhos. E as pedras eram pedras. Eu dormi menina naquela tarde em que brincávamos de amarelinha no quintal e não tínhamos vergonha de provar ao mundo que a gente se amava tanto, que podíamos ficar juntas na escola, na rua, no banho e na cama e que isso não era problema nenhum; pra quê separar?
Mas você foi acordada antes de mim e te levaram embora. Sem mãe, sem chão. E eu fiquei, na esperança de você voltar um dia, quando finalmente te deixassem partir. E você, enfim, voltou, mas sem vestido colorido; querendo sexo e debochando da minha nostalgia. E eu tentei acordar a menina da tarde e te pedir pra não ter ido embora. Eu quis ficar vivendo seu vestido colorido. Mas, de repente, eu acordei mulher. E vi que não existia mais caminho que ligasse as nossas casas e que as meninas que dormimos naquela tarde não morreram, mas nunca mais vão acordar.